As leituras de ficção que mais me marcaram em 2024, parte 4 e última (leia também as partes 1 / 2 / 3).
Outubro - Como se fôssemos vilões, M. L. Rio
Uma universidade prestigiada, um grupo seleto de alunos envoltos em temas clássicos, relações românticas confusas, dinâmicas de classe social, e uma morte: parece A história secreta, de Donna Tartt, mas não é. M. L. Rio não tem a mesma habilidade narrativa nem a mesma sofisticação com as palavras (acho que ninguém escreve frases com tanta maestria quanto Donna Tartt), mas a leitura ainda assim é divertida. A história fala sobre alunos de teatro em uma instituição que só encena peças de Shakespeare. Por isso, encontramos espelhos temáticos em diferentes momentos da trama e diferentes trabalhos do autor: Hamlet, Romeu e Julieta, Julio Cesar e Macbeth (minha favorita). 100% dark academia.
Para quem gosta de: Donna Tartt e Gillian Flynn
“O lago, com toda aquela água preta, espreitava no fundo de cada cena que encenamos depois disso - como um cenário de uma peça que fizemos uma vez, arrastado para o fundo da loja de cenários, onde teria sido rapidamente esquecido se não tivéssemos que passar por ele todos os dias. Algo mudou irrevogavelmente naqueles poucos minutos escuros em que ele ficou submerso, como se a falta de oxigênio tivesse feito todas as nossas moléculas se reorganizarem.”
“‘Então’, ele diz. ‘O quanto do que você me falou sobre aquela noite é verdade?’ ‘Tudo’, eu respondo, ‘de uma forma ou de outra’.
Uma pausa. ‘A gente vai jogar esse jogo?’ ‘Honesto fico, mostrando-me desleal; sou fiel mentindo’, eu falo. ‘Achei que, na prisão, teriam expulsado a tapas toda essa bobagem pra fora de você. (…) Por que você não me fala o que aconteceu? Sem performance, sem poesia.’
‘Pra gente, tudo era uma performance.’ Um pequeno sorriso me pega de surpresa e eu olho para baixo, tentando escondê-lo. ‘Tudo era poesia.’”
"Um bom ator shakespeariano - um bom ator de qualquer tipo, na verdade - não só apresenta suas falas, ele as sente. Sentimos todas as paixões dos personagens que interpretamos como se fossem nossas. Mas as emoções de um personagem não anulam as do ator - em vez disso, você sente as duas ao mesmo tempo. Imagine ter todos os seus próprios pensamentos e sentimentos emaranhados com todos os pensamentos e sentimentos de uma outra pessoa. Pode ser difícil, às vezes, separar qual é qual.”
“Eu olho pra você e de repente os sonetos fazem sentido. Os bons, pelo menos.”
Novembro - Jogos Vorazes (a trilogia), Suzanne Collins
É difícil falar de um livro que marcou tantos episódios da sua vida. A gente perde um pouco da objetividade e tenta transmitir a gigantesca experiência emocional que acompanha a imersão na história - muito mais potente que uma simples leitura. Jogos Vorazes conta a história de um país distópico organizado hierarquicamente em uma ditadura do medo de um Capitol sobre doze distritos, com poderosas e injustas dinâmicas de poder em que a extravagância e a riqueza encontram a fome e a miséria. Não tão diferente do nosso mundo. Lá, a crueldade sistemática vira entretenimento oficial: todo ano, 24 tributos, um menino e uma menina de 12 a 18 anos de cada distrito, são enviados para uma arena onde vão matar ou morrer. Esse é o pagamento por uma revolução fracassada de anos atrás, uma tentativa de libertação da tirania do Capitol. Agora, os jogos são transmitidos o dia inteiro, em um Big Brother macabro com o objetivo de lembrar o quão impotentes são as pessoas dos distritos, que são obrigadas a assistir (obrigadas mesmo, é uma atividade mandatória) aos seus amigos morrerem ou se renderem à selvageria. A vitória tem seus prêmios - a saída da pobreza, uma bagagem impensável de traumas eternos, e novas chantagens impostas pelos poderosos. Até que uma nova revolução acontece.
A mensagem política é forte e importante, mas no centro disso temos uma jovem confusa sobre si mesma, sobre amor, sobre relações familiares, sobre sua missão no mundo. É uma história sobre empatia e sobre nossa humanidade, sobre, como uma citação demonstra, evitar que “o medo ganhe da compaixão”. É uma história que não cai no padrão apelativo de superação para tentar gerar esperança - mas que gera esperança mesmo assim, mesmo na tristeza. E é uma história que tenta nos lembrar de que um mundo melhor é possível, mesmo com cicatrizes que talvez sejam eternas.
(E claro que estou ansiosíssima pelo livro novo da série, que vai ser do ponto de vista do Haymitch, um dos meus personagens favoritos. Vai ser lançado no mês do meu aniversário, presentão!)
Para quem gosta de: George R. R. Martin e Karl Marx
“Minha mãe e Prim vasculham os analgésicos, aqueles que só são disponíveis para médicos. São difíceis de conseguir, caríssimos, e em alta demanda. Minha mãe guarda os mais fortes para as piores dores, mas qual é a pior dor? Pra mim, é aquela que existe no presente. Se eu estivesse no comando, esses analgésicos acabariam em um dia, porque tenho pouquíssima habilidade de presenciar sofrimento.”
“Foi assim que aconteceu? Setenta e cinco anos atrás? Um grupo de pessoas sentou e votou para começar os Jogos Vorazes? Houve discordâncias? Alguém defendeu uma ideia de perdão e foi vencido por quem clamava pela morte das crianças dos distritos? O cheiro da rosa de Snow chega às minas narinas, desce pela minha garganta, um aperto desesperado. Todas as pessoas que eu amei, mortas, e agora estamos discutindo uma nova edição dos Jogos Vorazes para evitar o desperdício de vidas. Nada mudou. Nada nunca vai mudar.”
“Na noite em que senti aquela coisa de novo, a fome que me dominou na praia, eu sei que tudo isso teria acontecido de qualquer forma. Que o que eu preciso pra sobreviver não é o fogo de Gale, manchado de raiva e ódio. Eu tenho fogo o suficiente sozinha. O que eu preciso é de um dente-de-leão na primavera. O amarelo vivo que significa renascimento em vez de destruição. A promessa de que a vida pode continuar, não importa o quanto nossas perdas tenham sido terríveis. Que pode ser boa de novo. E só Peeta pode me dar isso. Então, depois, quando ele sussurra, ‘você me ama, verdade ou mentira?’, eu respondo ‘verdade’.”
“Como eu posso falar para os meus filhos sobre aquele mundo sem deixá-los paralisados de medo? Eu direi que sobrevivi. Que, nas manhãs ruins, parece impossível sentir qualquer alegria porque sinto medo que isso seja roubado de mim. Nessas horas, eu faço uma lista mental de todos os atos de bondade que presenciei. É como se fosse um jogo. Repetitivo. Até um pouco entediante depois de vinte anos. Mas existem jogos muito piores para jogar.”
Dezembro - Vidas tardias, Brandon Taylor
O ano acabou sem que eu tivesse terminado de ler, mas a narrativa satírica e engraçada é sensacional o suficiente para que fosse a obra mais importante do meu mês. Inclusive, li em inglês e tive a alegria de descobrir que o livro chega esse ano ao Brasil pela Fósforo. Inspirado no tempo em que ele participou do programa de escrita mais renomado dos Estados Unidos, o Iowa Writers’ Workshop, o livro traz uma série de histórias sobre personagens que são conectados por diversos tipos de relacionamentos. A resenha da NPR define o tema como “uma exploração de como o mito das possibilidades infinitas da juventude encontra as limitações de tempo, de espaço, de classe, e de desigualdade social”, o que achei bonito e adequado. A narrativa nos coloca dentro da cabeça de pessoas politicamente incorretas, desnudando de forma inteligente as crenças e as premissas falsas que sustentam um argumento social bastante falho.
Para quem gosta de: Paul Beatty e Jeffrey Eugenides
“Mas ninguém teve uma infância feliz. Ninguém teve uma vida boa. A dor humana existe em um vasto suprimento, e o que as pessoas tiram dele é o equivalente a alguns grãos em um celeiro. Tem dor para você e dor para você e dor para você - agonia suficiente para todo mundo. A dor de sua infância era tão banal que o envergonhava. Talvez fosse isso que ele ressentia no trabalho dos colegas. Não era que a vida dos colegas fosse pior que a dele, ou que a vida dele fosse melhor que a dos colegas - mas sim que todos tinham a mesma dor, a mesma mágoa, e ele não achava que deveriam sair por aí fingindo que era algo mais do que a operação rotineira do universo. Coisas pequenas e comuns - sentimentos feridos, pais cruéis, problemas estranhos e cansativos. Isso não merecia virar poesia, certamente. Mas ele sabia, de uma forma mais intuitiva que racional, que se escrevesse um poema sobre tudo isso, sobre sua vida, eles diriam que é brilhante. Eles diriam que era seu melhor trabalho, como se tudo o que já tivesse feito antes fosse mera ilusão, cortina de fumaça. Ele sabia que eles diriam que ficou bom, ficou vulnerável, e o que poderia ser pior do que isso?”
“Gerard estava estudando algo inútil, algo como poesia e forma medieval, e sua esposa estava cuidando dos filhos deles. Às vezes, ele os via na esquina da St. Mary's caminhando para o banco de alimentos semanal. Era o cúmulo da tolice, a academia. Você se afundava cada vez mais nas dívidas, no desespero, na fome, para poder se sentir um pouco especial, um pouco brilhante naquele pequeno e escuro canto do universo, sabendo de algo que ninguém mais sabia. A arte valia muitas coisas, mas valia a pena colocar toda a sua família à beira da extinção?”
“Que tipo de pessoa, que tipo de inteligência poética, ao ver sangue menstrual no lençol depois de um sexo ruim, pensou na decapitação de Medusa? Engraçado demais. Não o sangue em si, mas a associação pretensiosa. Tinha a coação. A transubstanciação da coisa real em algo tão carregado de significado que desmoronava em si mesma. O poema virou uma piada. Esse tipo de poesia aparecia com frequência no seminário: histórias pessoais transformadas em um sistema de gestos vagos na direção de grandes trabalhos que falharam em registrar qualquer compreensão genuína ou sentimento real por esse esses grandes trabalhos. Autoengano disfarçado de confissão. Seamus riu sozinho. O instrutor, um homem dissimulado com uma cabeça de fios brancos, olhou para ele. Pausou. ‘Algo a acrescentar, Seamus?’ Todo mundo olhou para ele. Sabia que isso era uma forma de direcionar toda a atenção para si mesmo. Era seu único traço carismático, que ele não conseguia controlar. Tudo bem, ele poderia tentar com mais afinco. Isso também era uma performance, mas era moralmente aceitável porque ele sabia que era uma performance. Não fingia que era poesia.”
“Miseráveis apesar dos elogios, quando elogios pareciam justamente ser o ponto dos poemas que escreviam. Para serem aplaudidos. Celebrados. Transformados em santos e mártires modernos. Cada vez mais curioso, pensou Seamus, que uma pessoa, apresentada com o que mais queria, pudesse parecer tão miserável.”
Faltam as leituras de não ficção. Logo, logo aqui.
Enquanto isso, me contem o que andam lendo. To amando as mensagens <3
suas resenhas me deixaram morrendo de vontade de ler todos
minhas melhores leituras de 2024 foram: "o galinheiro", sobre uma família que vai investigar o desaparecimento de uma das filhas e acaba descobrindo um segredo terrível (é um terror, não sei se você lê terror, mas caso isso ajude: da mais agonia do que medo, e é muito bem escrito); "Daisy Jones & the six", hypado mas merecido, parece tão real. Fiquei simplesmente obcecada, assim que terminei me deu vontade de reler; E por último "Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã" outro hypado mas que merece tudo e ainda mais. Lindo, fala sobre dor, amor e relacionamentos tão profundos que não conseguem ser defeitos independente do tempo. Amei demais, se for ler algum desses espero que escolha esse pois realmente é perfeito
enfim, perdão pelo textão, amo seus textos!
Estou lendo 2666 de Bolaño e relendo Cem Anos de Solidão 🙏🏼