As leituras de ficção que mais me marcaram em 2024, parte 3 (leia também as partes 1 e 2).
Setembro - Intermezzo, Sally Rooney
Intermezzo - cujo título, no xadrez, significa uma ação que apresenta uma ameaça e exige uma reação do oponente - nos apresenta dois irmãos, com personalidades (e vozes narrativas) muito diferentes. O mais velho, Peter, em uma profunda espiral depressiva, precisa encarar a bagunça relacional com uma sugar baby bem mais nova, por quem nutre carinho e desejo sexual, e com uma ex-namorada e atual amiga por quem nutre uma paixão platônica que não pode virar realidade já que ela, por causa de um acidente, não consegue mais transar. Sua narrativa fria e distanciada cria uma experiência curiosa de penetrar em uma mente desesperada por recuperar qualquer sensação ilusória de controle. O mais novo, Ivan, é um ex-prodígio do xadrez frustrado com as limitações e com a realidade do mundo capitalista de hoje, com dificuldade de se relacionar e com indícios de raiva acumulada fermentando. Seu principal relacionamento, criando um paralelo com o irmão, é com uma mulher mais velha, mas as diferenças não são só essas. Enquanto Ivan quer romper com o sistema, Peter quer conquistar e vencer dentro desse cenário que parece impossível de transpor.
O tema principal que atravessa a obra da autora é a forma como as relações humanas nascem, terminam e principalmente se mantêm, com toda a bagagem emocional e todo os problemas de comunicação que surgem junto. Se o ser humano existe em comunidade, em conexão com essa outridade, Sally Rooney pega o cerne do que é existir no mundo para estudar em prosa ficcional, tendo como pano de fundo também as relações políticas que permeiam a vida de todos.
As minhas duas resenhas favoritas do livro trazem comentários valiosos. Minha amiga pessoal Bárbara Blum falou em sua resenha para a Folha de S. Paulo: “Sally Rooney não fala de amor ou de sexo sem falar de poder. (…) O amor é moeda e função porque os personagens são pobres, ricos, homens e mulheres, desiguais, hierarquizados. Longe de ser um cinismo da parte de Rooney – o amor não é menos amor por estar a serviço. (…) O que move o livro são essas relações entre os personagens – e o buraco negro entre seus pensamentos e suas ações”. Isadora Sinay fala em sua newsletter: “É possível simplesmente viver de uma forma um pouco autêntica e sem ter toda sua subjetividade consumida pelo capitalismo tardio? Essa é uma pergunta que Sally Rooney levanta com seus livros, e a resposta que parece estar tateando é que, se é possível, essa possibilidade está na forma cotidiana como nós vivemos - e, principalmente, em como nós nos relacionamos - e em não perder de vista que somos uma comunidade de pessoas nesse mundo”.
Embora Pessoas normais continue sendo o meu favorito por motivos ultra pessoais, acho que Intermezzo é sua escrita na forma mais madura e menos autoindulgente. Tem quem ame a autora, tem quem odeie, e tem quem não entenda a paixão. O meu caso é o primeiro: o que ela fala e a forma que escolhe para essa narrativa me tocam profundamente.
Para quem gosta de: Gabrielle Zevin e Elif Batuman
“Eu não quero que você se sinta grata, ele diz. Eu quero que você se sinta feliz. Primeiro ela não responde. Descansa parada no colo dele, o peso dela, o perfume do seu cabelo escuro. Então ela diz: uau, acho que essa foi a coisa mais gentil que já me disseram.”
“Ele pensa, às vezes, que a natureza e o tamanho do seu sofrimento livraram ela das pequenas frustrações de meras inconveniências.”
“Eu atingi meu auge há quatro anos. (…) A gente tem todos esses sonhos, de que vai ficar cada vez melhor. Mas na realidade a gente começa a piorar, sem entender o motivo. (…) Para falar a verdade absoluta, gasto muito tempo com isso, porque nem sou tão bom. Mesmo que eu fique muito triste de admitir. Sabe, muita gente me disse que eu tava gastando muito tempo com isso, e eu pensava que eles só não entendiam. Agora penso que talvez tenha jogado fora muito da minha vida.”
“Emoções difíceis, todo mundo estava fazendo o melhor que podia. Ele era uma boa pessoa, ele tentou. Ninguém é perfeito. Às vezes você precisa que as pessoas sejam perfeitas, mas elas não podem ser, e você as odeia para sempre por não serem mesmo que não tenha sido culpa delas e nem sua. Você só precisava de algo que elas não tinham para dar. E você faz a mesma coisa na vida de outras pessoas, você é a pessoa que desaponta todo mundo, que fracassa em melhorar a situação, e você se odeia tanto que queria morrer.”
“Cada um tinha sua própria felicidade para pensar.”
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