alcateia #56, esse livro é sobre nós?
(Quase) tudo que pensei lendo "As perfeições", de Vincenzo Latronico.
(Quase) tudo que pensei lendo As perfeições, de Vincenzo Latronico.
1. Antes de tudo, um contexto: o livro conta a história de um casal millennial do mundo publicitário que se muda para Berlim lá por 2010, o auge da era indie, buscando viver uma experiência autêntica. A história não tem diálogos e é contada apenas na terceira pessoa do plural: eles. Os protagonistas não são analisados de forma individual, de modo que conhecemos apenas o personagem do casal, a compactação de duas pessoas em uma só, nessa identidade que se constrói menos nas (inexistentes) particularidades humanas e mais na projeção estética dessa performance de quem se quer ser - ou pelo menos aparentar.
2. Fui uma única (e maravilhosa) vez a Berlim, há quase 10 anos. Lembro o preço baixo da deliciosa comida vietnamita perto de casa, em Kreuzberg, o aluguel barato para uma semana, a atmosfera linda da mistura de concreto e verde, os parques cheios de crianças e idosos, as ruas acessíveis, os grafites misturando cores saturadas e desbotadas contando uma história da passagem do tempo, a ponte e o rio e a East Side Gallery, os prédios iguais da antiga Berlim oriental, as construções pesadas e muito diferente da delicadeza arquitetônica de Paris, a energia de liminal places que nos encontra a cada esquina, as lojinhas com pinturas de artistas locais, as risadas noturnas a caminho de Friedrichshain… às vezes sonhos que estou de volta a Berlim, mas, no meu imaginário, a única Berlim que existe é essa de uma década atrás.
3. Lista de coisas para um teste do quanto a nossa vida millennial é encaixotada nesses estereótipos (eu fiz 12 dos 21 pontos): plantas, apartamentos decorados, computador avançado, Wi-Fi bom, referências artísticas, Berghain, Primavera Sound, galerias de arte, pratos de cerâmica, cozinhar, panelas de ferro, likes nas redes sociais, curadoria de fotos, cena noturna, móveis dinamarqueses, scroll infinito, torrada de avocado, fotos de comida, arte contemporânea, chás, café gourmet…
4. A geração Z vai nos salvar?
5. “O futuro parecia desfocado. Não conseguiam imaginá-lo substancialmente diverso de sua vida cotidiana - tão perfeita e impecável -, e isso lhes conferia algo de abstrato e pouco atrativo. Tinham crescido com a imagem latente das transformações sociais dos anos 60 e 70; (…) gostariam de ter tido vinte anos em 68, ou de ter protestado a queda do muro. (…) Anna e Tom não só tinham inveja de quem lutara por um mundo radicalmente diferente, mas até mesmo de quem havia sido capaz de imaginá-lo. Aquela nostalgia era um pouco hipócrita. Fazia anos que a crise migratória pulava no horizonte das manchetes dos jornais, ainda que por muito tempo os dois a tivessem considerado um problema local dos países do Mediterrâneo, já não deles. Em Berlim, tudo isso não lhes dizia respeito, ou apenas de maneira abstrata com que lhes diziam respeito as injustiças remotas.” (Trecho do livro.)
6. O livro é uma ode ao famoso As coisas, em que George Perec aborda o mesmo tema enquanto olha para a geração dos anos 60. Na New Yorker, Alice Gregory escreve que “o truque de mágica de As perfeições, assim como de As coisas, é relevar o leitor a si próprio - de forma gentil, como uma terapeuta encorajaria um paciente a alcançar uma verdade inconveniente”.
7. Berlim mudou. Não porque vi, pisei, vivenciei, respirei esse novo ar. Mas porque li. Li na newsletter da Lalai, li nas notícias de que o Berghain vai fechar, e li em As perfeições. Mas os pensamentos dos personagens convidam outras reflexões: “essas lembranças lhes suscitavam ternura, sim, mas também uma espécie de desorientação. Por muito tempo, esses detalhes todos tinham feito com que se sentissem em casa. Mas agora essa sensação tinha desaparecido, sem que nada tivesse mudado naquilo que antes a gerava. Era perturbador, falso. E, pensando nisso, Anna e Tom se sentiam incapazes de entender o quanto daquela mudança havia acontecido na cidade, muito mais aberta quando eles tinham vinte anos, e o quanto ocorrera neles mesmos, que já não tinham mais essa cidade [lista de mudanças que viram na cidade]. Mas, se Anna e Tom os observassem por mais tempo, a perspectiva se invertia, e de repente, como uma espécie de vertigem, eram invadidos pela sensação de que eles é que estavam presos.”
8. Wait, is this fucking play about us?
aaah, eu amei muito esse livro ao mesmo tempo que ele me deixou deprimida! hahahahaha... poderia ser qualquer cidade, mas pra mim, só poderia ser berlim no livro. obrigada por compartilhar a espiral <3