alcateia #12, você já exerceu seu direito de ser feia em Berlim?
Foda-se, to sendo artística. Adoro que em Berlim ninguém liga pra como você tá. Vim pra cá do Japão, mas lá todo mundo é obcecado pela aparência. Venho para Berlim pelo direito de ser feia.
Esses tempos, uma edição da newsletter Espiral de Lalai Persson veio com o título “Berhain e sua influência na cena da música eletrônica”, o que me fez entrar em espiral (que sacadinha barata). Isso porque eu *amo* Berlim e o culto do Berghain.
Berlim é, para a música eletrônica, o que Florença foi para o Renascimento, fala a New Yorker. Evocou Da Vinci, Michelangelo e Botticelli nessa comparação? Agora o negócio ficou sério. Essa matéria da New Yorker de 2014 é uma viagem pelos clubes noturnos de Berlim, construindo pelas pistas de dança uma genealogia do techno - que nasceu em Detroit, mas floresceu no pós-Guerra Fria na capital alemã. Explorando a batida específica e as mil ramificações do EDM, a matéria nos leva aos diferentes inferninhos da cidade - quem viveu a Augusta lá por 2012, curiosamente o ano em que o mundo iria acabar, sabe bem qual é o clima.
É impossível falar da cidade sem lembrar o (na minha humilde opinião) melhor disco da carreira de Lou Reed (sim, ainda mais que o da banana): “Berlin” é uma opera-rock linda e depressiva (como eu). E pra quem ama críticas musicais, a melhor resenha de show que eu já li na vida foi essa sobre um show de Lou Reed, escrita por Elizabeth Wurtzel, autora de “Prozac nation”, para o jornal de Harvard, o The Crimson.
Mas a newsletter me lembrou também das minha aventuras pela cidade (tem uma rua chamada Karl Marx!!). Em um passeio a pé perto de onde eu estava hospedada, entre Kreuzberg e Friedrichshain, parei para não cruzar um espaço da calçada porque tinha alguém tirando uma foto. A fotógrafa de mentirinha me olhou, abriu um sorriso, disse que eu podia passar e falou:
- Foda-se, to sendo artística. Adoro que em Berlim ninguém liga pra como você tá. Vim pra cá do Japão, mas lá todo mundo é obcecado pela aparência. Venho para Berlim pelo direito de ser feia.
O primeiro ponto turístico a que eu fui na cidade é um dos meus favoritos do mundo inteiro: a East Side Gallery. De um lado murais encomendados e, do outro, murais espontâneos. São de artistas da cidade, querendo expressar os próprios sentimentos e ideias conflitantes com os que já estavam ali. A gente é muito obcecado pelo passado, eu fico pensando. Monumentos do que já vivemos são erguidos e destruídos, construindo a história que querem que a gente lembre. O único mural livre de grafites é uma bandeira de Israel, incólume no meio do caos dos outros painéis.
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Pequena viagem à Barcelona, onde encontrei uma israelense pela primeira vez, chamada May.
– Meu pai é ucraniano. Ele não quer voltar pra Rússia de jeito nenhum, mas eu quero muito conhecer lá. Eu vou encontrar ele e meu irmão aqui.
– Você não mora com eles?
– Não… não consigo. Não consigo nem viajar com eles. Eles viajam juntos, se hospedam juntos. Eu faço tudo sozinha. A gente se encontra às vezes.
Ela abandonou a faculdade de artes por sentir que as regras acadêmicas podavam demais a criatividade e quer sair de Israel pra morar na Europa.
- Talvez Berlim, os alemães sempre querem ajudar judeus, mas tenho medo de me decepcionar com a cidade, tenho muitas expectativas.
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De volta a Berlim: as minhas expectativas com a cidade não foram frustradas. Ando com muita nostalgia do meu tempo lá e vontade de voltar. A imagem de paredes cobertas por grafites e a arte pulsante tomou conta: a cidade é exatamente como eu imaginava. Às 23h a rua estava cheia de pessoas na rua, comendo, conversando, indo pra alguma festa, bebendo cerveja, se divertindo.
Conheci o atelier de uma fotógrafa cujas fotos me emocionaram de cara. Ela me falou que todo seu trabalho é analógico e os efeitos são todos feitos na revelação. Em alguns aspectos, ela me lembrava a fotógrafa Alison Scarpulla, que minha melhor amiga adora. A ponte do rio que separa Kreuzberg de Friedrichshain é também, ela mesma, uma obra de arte. O memorial oficial do muro de Berlim fica em uma região um pouco mais distante da cidade: é ao ar livre e traz imagens, textos e áudios com reportagens e entrevistas. Passeando por lá, pude ler e conhecer detalhes da vida durante a época em que o muro foi erguido: as famílias e amigos que aos poucos foram sendo separados enquanto o trânsito entre os dois lados de Berlim se tornava proibido.
Na parte interna do memorial, havia ainda mais relatos e uma série de pequenas curiosidades, como o álbum do Jimi Hendrix que era proibido na Berlim Oriental e contrabandeado para dentro ou a estação fantasma que passava por Berlim Ocidental e foi soterrada para impedir escapes. A impressão que eu fiquei pela escolha de palavras e organização do relato é que a parte oriental da cidade é mostrada com uma espécie de prisão infernal, onde quem escapa para o lado ocidental é homenageado como herói. Essa é a história que querem que a gente lembre: que o capitalismo salvou a todos. De toda forma, a experiência é fortíssima: saindo da macropolítica e entrando na vida individual das pessoas, os relatos são de arrepiar.
Mesmo assim, a intervenção no muro que fica perto do rio teve um efeito muito mais forte em mim. É inegável como ler e ouvir histórias da época seja impactante, mas a impressão final foi que East Side Gallery é o memorial que as pessoas da cidade ergueram e ainda mantêm, com intervenções e grafites colocados por cima dos painéis originais, enquanto o memorial oficial é exatamente isso, a versão oficial dos fatos.
A outra grande experiência artística de Berlim foi meu encontro com Nefertiti, uma obra magnífica, um dos poucos vestígios do único período do Antigo Egito que quebrou todos os padrões de arte. Mas essa fica para a próxima.
E aí, você já exerceu seu direito de ser feia em Berlim - ou em qualquer outro lugar do mundo?
Amei a edição (e que a minha te inspirou). Várias coisas pra comentar e curiosa com um retorno seu sobre o que você vai achar da cidade que ir encontrar. Berlim muda o tempo todo. Eu mal a reconheço comparando com versões das minhas primeira vindas em 1997 e depois em 2007. Uma curiosidade: quando eu visitava a cidade, eu tbem achava que o Memorial do Muro ficava longe, mas só morando aqui que descobri que ele é no centro, no Mitte, mas fora do burburinho. Inclusive o que eu não tinha sacado é que ele é na rua do Mauerpark e a uma andada suave até lá. Já o East Side Gallery mudou demais, mas vou deixar vc voltar para ver com seus próprios olhos e então me contar o que acha dele agora. E concordo com a ponte linda que fica ali ao lado, acho que a mais bonita da cidade. E vou correr ler esse texto da New Yorker, que eu nunca li. Te esperando por aqui. 😘