alcateia #54, babygirl, anora e o desejo
É o contraste entre quem tem poder, onde, em quais situações, e em quem não tem o poder, voluntariamente ou não, em busca do prazer ou não, onde, e em quais situações.
O primeiro quarto do filme tinha recém acabado quando o par romântico (romântico?) de Babygirl passa pela poderosa Nicole Kidman, em um contexto público, e sussurra “boa garota”. Ele é décadas mais jovem que ela. Ele é um estagiário e ela é a CEO. Babygirl explora os limites do tesão e da fidelidade, do depravado e do casamento puro, subvertendo a história clássica da crise da meia idade em que um homem mais velho busca uma menina mais nova para se sentir mais viril. Babygirl não é uma crise de meia idade, não é uma necessidade egóica. É uma investigação de desejos proibidos, protagonizada pelo prazer feminino, tendo como foco uma geração de mulheres que cresceram afogadas na repressão sexual.
A cena acontece em um restaurante e não há intimidade entre os personagens. Meia dúzia de interações ambivalentes levaram a esse momento. À distância, um pouco antes, ele envia um copo leite para a mesa da chefe. Um pouco chocada com a ousadia, ela ergue o copo encarando seu par e bebe até o fim. O contato frágil entre os dois é equilibrado na promessa de um relacionamento extraconjugal que ainda não se concretizou. Por que uma mulher tão poderosa entenderia uma mensagem cifrada em um copo de leite? Por que aceitaria de forma tão submissa? A resposta, claro, é óbvia: mesmo do alto do seu poder - econômico, profissional, hierárquico - ela ainda é uma boa garota.
A história nos leva a um clássico paradoxo no mundo do BDSM (bondage e disciplina, dominação e submissão, sadomasoquismo): da mulher que exerce poder e controle na vida toda sentindo prazer no espaço de tempo em que abre mão completamente desse controle, consentindo que seu poder seja subjugado. É o contraste entre quem tem poder, onde, em quais situações, e em quem não tem o poder, voluntariamente ou não, em busca do prazer ou não, onde, e em quais situações.
Ao contrário da fantasia de Cinquenta tons de cinza, em que um homem poderoso e experiente guia uma mulher iniciante e ingênua por um mundo de depravação retratada como impecável, Babygirl explora o desejo com todo o seu lado sujo, permitindo questões conflitantes de vergonha, vulnerabilidade e dúvida. A subjetividade da personagem de Nicole Kidman é construída em um paralelo perfeito para sua exploração sexual: de um lado, a vida doméstica perfeita e limpa, sexo de marido e mulher calcado no clichê do casamento sem prazer, e, do outro, a vida secreta, dominada pelo desejo de um prazer que alegremente abriria mão da domesticidade (um adendo: estou com Esther Perel quando ela alega que o prazer depravado também pode existir no casamento).
As interações de Babygirl permitem humor, constrangimento e estranheza. Na Boitempo, a psicanalista Cauana Mestre escreve sobre a complexidade das nossas fantasias, dizendo que “não habitam o politicamente correto e são indomesticáveis”. Perto do lançamento do filme, dirigido por uma mulher, surgiu um outro olhar sobre desejo, Anora, dirigido por um homem. Anora, que curiosamente dá título ao filme, não é o ser desejante nessa história, mas o objeto de desejo. Aqui o desejo do outro encontra nela uma performance que nega a intimidade verdadeira, o tesão compartilhado e orgasmo em conjunto. As vidas da protagonista não são separadas: são hiperexpostas, exibidas, sem vergonha, de gritos ao invés de sussurros. A nudez, muito mais presente, muito mais explícita, não é espelho da vontade feminina. Enquanto a submissão de Babygirl é voluntária e fonte de prazer, a de Anora é fruto da desigualdade de classe e o único prazer é a autonomia financeira.
Ao longo da história mundial, a submissão feminina foi construída através da dominação enraizada em todos os âmbitos da vida: a proibição de ter uma conta bancária virou a disparidade salarial, a proibição do voto se transformou na disparidade de gênero de políticos eleitos, e a violência - sexual, financeira, verbal, marital, física - continua a mesma e ainda leva à morte. Como falar da submissão voluntária em busca do prazer nesse contexto controverso e historicamente prejudicial? Em um mundo que adotou a energia feminina e a volta das esposas tradicionais? Não tenho as respostas certas, mas acredito em uma coisa: é preciso buscá-las, porque sequestrar o desejo feminino seria outra forma de violência.
Em uma newsletter para a Obvious, explico o contrato sexual do BDSM, prática baseada em quatro palavras-chave: segurança, sanidade, confiança e consentimento. Os participantes entendem que consentimento é um processo interativo, dinâmico e transparente, baseado no respeito aos limites estabelecidos. Uma das frases clássicas de quem pratica BDSM é que as necessidades da pessoa submissa são sempre mais importantes do que os desejos da pessoa dominante. É uma simplificação do fato de que quem se submete é quem controla os limites: e não, eles não podem, sob hipótese alguma, serem cruzados - e há ainda uma responsabilidade da pessoa dominante de entender se aquele consentimento da pessoa submissa está sendo feito de forma sóbria e segura. Por isso, o BDSM explorado em Babygirl, mesmo acontecendo sem conversas que seriam necessárias, é construído na vulnerabilidade, na permissão e no protagonismo daquela que busca explorar os limites do próprio desejo em busca do prazer.
Anora traz um outro tipo de submissão, curiosamente muito mais aceito pela sociedade, que se promove como voluntário, mas não é (aliás, Mikey Madison ter ganhado o Oscar é uma prova disso). É de novo o contraste entre quem tem poder, onde, em quais situações, e em quem não tem o poder, voluntariamente ou não, em busca do prazer ou não, onde, e em quais situações. Em Anora, não existe contrato baseado em consentimento, mas em uma troca de serviço em que cada um tem um papel fixo a exercer e em que não é permitido um vislumbre de humanidade de uma das partes. A personagem de Mikey Madison é empacotada em desejos dos outros e embalada na performance da mulher desejada, não no sujeito que deseja, e não existe espaço para conflito interno: é um trabalho, é sua função no relacionamento.
Apesar de tudo, torcemos por ela. Sua fantasia é menos com o amor romântico e mais com a promessa de liberdade que só o dinheiro traz - e, para quem nunca teve, ascender de classe pode ser o desejo mais importante. As dinâmicas de poder se tornam óbvias em uma fala específica que, de novo curiosamente, não sai da boca da protagonista, mas do seu então marido, um despreocupado e rico jovem russo: “você é burra? É claro que vamos nos divorciar”. É fácil entender que, para ele, esse casamento sempre foi uma investida sem riscos, da qual poderia sair incólume a qualquer momento, enquanto, para ela, era uma parceria verdadeira baseada em uma troca fácil: estava disposta a emprestar seu corpo porque estava apaixonada, não pelo russo, mas pelo sonho americano que promete uma vida justa e abundante para qualquer cidadão. Talvez ela não fosse burra, só estivesse sonhando de forma ingênua com um final feliz.
E então fica a pergunta: quem tem poder, onde, em quais situações? Quem não tem o poder, voluntariamente ou não, em busca do prazer ou não, onde, e em quais situações? E mais: existe uma forma segura de abrir mão desse poder em busca do orgasmo?
No próximo texto…
• Como forma de tentar responder a essas perguntas, confesso que fui obrigada a reler, hmm, Nietzsche (ew). Em Genealogia da moral, ele questiona o surgimento e as bases da nossa noção coletiva do que entendemos como bem e mal.
• Só que as questões de submissão sexual vão muito além da culpa ou do questionamento que surge do embate entre a moral e o desejo.
• Ser mulher e ter prazer em algum tipo de prática sexual derrogatória é mal visto em qualquer círculo: entre conservadores, são mulheres que não sabem se dar o valor; entre feministas, são traidoras da luta; na religião, é pecado; intelectualmente, é fraqueza. O prazer que deriva da submissão sexual é muito solitário.
Maravilhosa ❤️👏
Texto muito bom. :)