alcateia #07, existe liberação sexual?
Existe uma óbvia desconexão entre ser sexy e o sexo em si, e, pior ainda, essa ideia é responsável pela diminuição do prazer sexual feminino.
Em 2014, escrevi um texto que viralizou e chegou a 1 milhão de visualizações. Se chamava “A falácia da liberação sexual” e foi republicado em zines e outros sites. Hoje, quase 10 anos depois, muitas coisas mudaram - e muitas continuam iguais: o mundo ainda parece ser muito mais sobre saciar a fantasia sexual masculina de disponibilidade ilimitada de mulheres do que sobre a liberação sexual feminina de verdade.
Em 2005, Ariel Levy publicava Female Chauvinist Pigs: Women and the Rise of Raunch Culture (algo como “porcas chauvinistas: mulheres e o crescimento da cultura da vulgaridade”), em que critica o mundo hipersexualizado que vê mulheres como objetos. “É a ideia de que a sexualidade feminina é sobre performance, e não sobre prazer”, diz a autora, explicando que é comum mulheres participarem de atividades sexuais que não expressam seus desejos individuais, mas são designadas para tornarem essa mulher desejada ou causarem prazer para o homem observador. É male gaze que chama, né?
Hugh Hefner diz, na introdução da primeira edição da revista que criou, a fatídica Playboy, que gosta de meninas divertidas e fiéis, mas que mentalmente prefere a companhia de homens. “Não temos interesse em mulheres misteriosas ou difíceis, em femme fatales que usam lingeries elegantes e rendadas, e são tristes e meio sujas psicologicamente,” ele declara, ao que Levy responde com a conclusão óbvia de que a revolução sexual inaugurada na década e apoiada por Hefner era válida apenas para os homens: mulheres com a mesma riqueza de experiências sexuais que ele, e que também gostavam de andar por aí de roupão, eram “psicologicamente sujas”.
Entre os dados apresentados por Levy, está o depoimento da atriz pornô Jenna Jameson de que nunca consegue assistir às suas cenas pelo trauma que elas representam e a estatística aterradora dos anos 2000 de que um quarto das meninas dos Estados Unidos entre 15 e 19 anos - justamente a geração de millennials do fim dos anos 80 e começo dos anos 90 - descrevem sua primeira relação sexual como “consensual, mas não desejada”. Consensual, mas não desejada. Hoje, duas décadas depois, as discussões sobre consentimento seguem vivas, infelizmente sem a unanimidade que, pelo respeito básico à humanidade, deveria ser óbvia.
Terreno fértil para todo tipo de violência, estatísticas e depoimentos aterradores mostram a realidade obscena da indústria pornográfica (pausa para indicar o filme Pleasure). Linda Lovelace conta que sua iniciação foi em um estupro coletivo de cinco homens, financiado pelo pornógrafo Chuck Traynor: “Ele me ameaçou com uma arma. Eu nunca tinha feito sexo anal e aquilo me destruiu. Eles me trataram como uma boneca inflável, (...) eu nunca senti tanto medo e desgraça e humilhação na minha vida”. Do outro lado, os depoimentos dos chefes da indústria pornográfica entregam que “o que eu realmente gosto de ver é violência contra mulher” (Bill Margold), “não tem nada de que eu goste mais do que uma garota que fala que não vai fazer sexo anal, porque sim, ela vai ter um pau enfiado no seu cu” (Max Hardcore), “pode ser que promova violência contra mulheres nos EUA, mas eu penso ‘que bom’, eu odeio essas putas” (depoimento de um pornógrafo que criou títulos como “Bem-vindos ao acampamento do estupro”). Nada mais adequado que o slogan do movimento Women Against Pornography, “Pornografia é a teoria, estupro é a prática”, e a resposta “não assista à pornografia” para quando homens perguntam como podem ajudar o feminismo (fica o convite, viu?).
Depois do movimento #MeToo, parece que houve uma virada cultural muito bem-vinda. Harvey Weinstein e Jeffrey Epstein, cujo caso é retratado em uma série documental na Netflix, são sintomáticos dessa cultura que visa a plastificação feminina para consumo masculino. A raiva que o movimento gerou (até o Kanye West reclama que o amigo sofreu as consequências do movimento - ou melhor, das suas atitudes) só prova a hipótese. E, falando em hipóteses: um estudo apresentou teorias sobre como o processo cognitivo cerebral reduz a mulher a um ser sem agência, sob o olhar masculino, quando ela está vestida com roupas que chamamos de sexy. (Aprendi isso vendo TikTok!!)
Em sua Ted Talk, Caroline Heldman contesta a mentira de que “sexo vende” e elabora que, às mulheres, é vendida e imposta a noção de que através da subjugação da nossa sexualidade garantimos nosso valor. “A cultura da vulgaridade não é sobre abrir a cabeça para as possibilidades e mistérios da sexualidade. É sobre infinitamente reiterar uma particular – e comercial – forma de sexualidade”, explica Levy enquanto avança a discussão. Uma mulher sexy, na cultura atual, não precisam ser sexual - aliás, muitas vezes é ainda melhor se não for. “Provar que você é gostosa, merecedora de desejo e, mais que isso, que você quer provocar esse desejo ainda é exclusivamente uma tarefa para mulheres. Não basta ser rica, bem sucedida e realizada (...), até mesmo mulheres no topo de seus campos de atuação precisam se mostrar sexualmente disponíveis”, Levy explica.
Existe uma óbvia desconexão entre ser sexy e o sexo em si, e, pior ainda, essa ideia é responsável pela diminuição do prazer sexual feminino. E, se o orgasmo (ou melhor, nós mesmas…) não é o objetivo, qual seria? Pronto, chegou a hora do corte lacaniano.