alcateia #47, não quero falar de homens monstruosos
Tem como existir uma régua que possa medir a qualidade da obra versus a gravidade dos atos?
Quando David Foster Wallace escreveu Breves entrevistas com homens hediondos e mergulhou na mente de homens hediondos, como o título sugere (#spoileralert), imagino que previu o desconforto que o texto traria. Esse, que é meu livro favorito do autor, transforma homens que cometeram coisas monstruosas em protagonistas, dá voz a pensamentos sórdidos, e incomoda. Mas de qual incômodo estamos falando? É um texto que expõe o que há de violento no mundo ou que justifica? Pior: o que fazer quando esses homens hediondos são os autores?
A escritora Claire Dederer reflete na Paris Review que “esses homens cometeram algo terrível, mas também criaram algo maravilhoso. Essa coisa indefensável mancha uma grande obra; é difícil assistir ou ouvir ou ler uma grande obra sem lembrar que existe essa coisa indefensável. São monstros geniais”. Na sua participação no podcast da Vox, The Gray Area, ela questiona o que perdemos quando excluímos toda arte de homens - e mulheres também, alô Alice Munro - hediondos.
A “grande obra” que ela cita é aquela que nos toca, e o que perdemos é nossa experiência individual com as emoções que esse produto artístico suscita - o produto em si como coadjuvante da experiência emocional. (Sim, posso analisar as músicas do Leonard Cohen pra indicar onde a poesia foi assim, ó, perfeita, mas é o sentimento que elas me trazem que importa.)
Por trás de muitos argumentos sobre separar a obra do artista, está o conceito da morte do autor, de Roland Barthes. Para quem não é familiarizado com a teoria, o básico é esse: assim que o criador coloca seu trabalho em seu suporte de escolha e publica para uma audiência, esse produto fica fora de seu controle. Deve se sustentar em si mesmo e cada sentido que suscita é criado pela sua apresentação e pela interação entre suas partes (palavras, formato, estilo, cortes, cinematografia, trilha sonora, instrumentos etc).
A ensaísta Sierra Élise Hansen escreve no Michigan Daily que “a morte do autor não deve ser interpretada como seu desaparecimento, mas como a fagocitose do autor pela obra. A morte do autor não seria sobre separar a arte do artista, mas sobre eliminar a autoridade desse artista sobre sua arte. A morte do autor é, na verdade, sobre o nascimento do leitor.” (Achei belo.)
Aqui é onde fico um pouco confusa: se a obra é o relevante, se a mensagem é o que importa, e quando a mensagem reflete esse homem hediondo? Sierra Élise Hansen questiona, trazendo para a discussão um dos casos mais emblemáticos desse debate: “quantas versões de si mesmo Woody Allen coloca em seus filmes? Quantos dos seus supostos desejos aparecem em suas tramas?” Na hora de falar sobre o diretor, Claire Dederer fala que “a coisa mais chocante ao ver Manhattan foi a casualidade, ‘eu to comendo uma menina que tá na escola’. Sim, ele sabe que a relação não tem futuro, mas só fica um pouco incomodado com as implicações morais. Allen é fascinado pela moralidade, menos quando toca nesse tema - o de um cara na meia idade comendo meninas adolescentes”.
Se a arte existe não apenas pelo entretenimento, mas também pela sua capacidade de gerar emoções, essas emoções que explodem ao ver um homem hediondo escrevendo sobre um relacionamento com uma menor de idade não deveriam ser justamente o mais importante? Se falamos em julgar a obra por seus próprios méritos, e quando a obra é o problemático? São dúvidas reais, não perguntas retóricas. O que devemos sentir ou pensar? O que eu devo sentir ou pensar?
Claire Dederer escreveu um livro inteiro para refletir sobre isso: Monsters, que com com muita nuance pensa sobre o dilema de quem é fã. “Eu não sou imune à biografia. E o que eu faço com esses monstros? Tenho alguma responsabilidade? De virar as costas ou de superar o nojo pela sua biografia e continuar consumindo esse conteúdo? E por que esse monstro nos deixa - me deixa - tão brava em primeiro lugar?”
Só que eu não quero escrever textos raivosos. Não quero falar sobre tudo que tem de errado no mundo - tem tanta coisa assim já sendo escrita, não tenho nada de novo pra falar sobre isso. Quero ter um olhar otimista ou pelo menos reflexivo sobre o presente e o futuro. Por isso, desisti de continuar esse texto.
Por semanas aberto no Scrivener, uma frase por dia, percebi que não estava mais gostando da experiência ou do resultado. O interesse surgiu depois de escrever esse texto sobre o artista colocado em um pedestal e de pesquisar tanto sobre relações parassociais - separar ou não o autor da obra parece ser só uma consequência dessa tendência. Ano passado, fãs escreveram uma carta indignada para a Taylor Swift, reclamando que ela tinha escolhido se relacionar com um homem monstruoso - e a resposta dela foi uma música com a frase “deixa eu te falar uma coisa sobre meu nome: ele é só meu para sujar” (ai que tradução horrível, “mine alone to disgrace” é tão mais poderoso).
No fim, ficam só perguntas que me fiz ao longo do tempo:
Tem como existir uma régua que possa medir a qualidade da obra versus a gravidade dos atos?
Por que a responsabilidade recai sobre o indivíduo quando tantas instituições (mídia, crítica, patrocinadores, festivais) apoiam pessoas monstruosas?
O que é ser monstruoso?
Faz ou não diferença gastar dinheiro com essas obras? E se a pessoa tá morta? E se a vítima é quem recebe o dinheiro, como no caso da filha da Alice Munro?
Falar sobre o amor à obra de pessoas monstruosas incita esse endeusamento? Amar em silêncio é revolucionário?
E quando a obra ou o autor são “fruto de uma época”?
Para além de situações de crimes, e quando o problema é uma opinião como uma uma declaração de apoio ao Trump ou ao Bolsonaro? Uma frase mal expressada ou um tweet de dez anos atrás que não reflete a opinião atual é o equivalente a apoiar um genocida?
Por que exigimos uma virtuosidade moral de artistas? Isso faz sentido? Mas também por que aceitaríamos crimes de quem admiramos?
Existem coisas perdoáveis? Ou melhor: existe perdão?
Desisti de escrever esse texto. Não faço a menor ideia.
Particularmente, o que me impede de apreciar a obra de um artista que já admirei e que fez algo que repudio, é o fato de não conseguir me desligar da lembrança do que o determinado artista fez, tirando a experiência emocional que eu teria com a obra, dando lugar a pensamentos intrusivos.
Eu gostaria de poder separar, pois sinto falta de muita coisa, e não acho que há um modo correto de lidar com isso.
São ótimos questionamentos e também já fiquei muito cansada ao refletir sobre eles. Na minha vida, eu tento não gostar nem gastar meu dinheiro com pessoas (obras) monstruosas, principalmente quando são homens. Acho que levo mais em conta meu próprio "moral" que os dos outros. Me sinto cúmplice das barbaridades e não quero me sentir assim.