alcateia #45, o artista no pedestal
A nossa imagem coletiva favorita do artista: a alma sensível e torturada que vê aquilo que outros não vêem. O grande criador, tal qual deus.
Esse ensaio será divido em três partes publicadas, se deus quiser (e eu não surtar), semanalmente, sobre os seguintes temas: o autor no pedestal, a morte do autor, autores horrendos e suas obras
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Depois de assoar o nariz pela terceira vez em quinze minutos e seguir respirando pela boca um ar viciado e quente, voltei a sentir o nariz coçar. Será que vem agora? Mais uma crise de espirros? Quantos serão, dez, quinze, vinte de uma vez só? Ufa, só oito. Será que to melhorando? Enquanto Ned Stark me encara na tela do computador, enquanto Cersei Lannister fala que dividiu um útero com irmão de forma tão íntima que explica também o nascimento do incesto, começo a lembrar que nenhum autor merece um pedestal. Quer dizer, mais ou menos.
Quando George R. R. Martin está há 13 anos sem lançar o novo volume de uma série, em um intervalo de tempo que soma mais que o dobro do maior intervalo entre qualquer outro livro da série, isso se justifica pelo fato de que talvez ele possa estar em um pedestal. Estudar a história - e digo estudar porque é diferente de apenas ler - é uma experiência apoteótica. Conhecer as linhagens familiares, entender as criaturas fantásticas, tecer a árvore de relacionamentos é mergulhar em um reflexo torto da nossa própria história, errado em fatos mas talvez acertado em dinâmicas políticas que atravessam gerações. Como ele mesmo fala, seu maior interesse é abordar a natureza do coração humano em conflito com si mesmo (aprendi com a Mikannn).
Mas os pedestais que eu gostaria de derrubar talvez não sustentem autores em si, mas uma categoria Autores com A maiúsculo, Artistas chamados de gênios como herança do Renascimento (“Arte é coisa mental”, disse Da Vinci, e eu nem discordo) e do Romantismo que criou a nossa imagem coletiva favorita: a alma sensível e torturada que vê aquilo que outros não vêem. O grande criador, tal qual deus.
Em uma aula com Assis Brasil, na sua renomada oficina de escrita, comentei não gosto da ideia de criar. As ideias são temas que surgem de movimentos naturais da cultura e da sociedade, e nós, que escrevemos, somos menos criadores e mais analistas, mais tradutores desse algo pouco palpável que, acima de tudo, não é nosso. O que não significa que não haja esforço, ou talento (o esforço sempre ganha do talento, aliás). Refinar a escrita é trabalhar no ofício dia após dia, estudar, ler muito, e escrever ainda mais. Mas esse papo de onde nascem os escritores é outro texto. O que fica aqui é a análise de onde nasce o pedestal. Será que vem dos cursos acadêmicos, prêmios literários, e apostos como “a voz da geração”, “o próximo Fulaninho de Tal”, “livro da década do New York Times” (e são tantos prêmios, tantas pessoas a se comparar, tantas listas…)?
“Uma consequência do fenômeno de academizar a escrita é a mudança na forma de ser escritor. A maioria das pessoas com menos de 50 anos que têm sucesso no meio editorial ganhou nota 10, levantou a mão nas horas certas, e entrou em alguma das melhores oficinas de escrita. Dá pra imaginar essa trajetória para grandes nomes? Faulkner não terminou o ensino médio, Woolf estudava em casa, Dostoievski (alguém define a grafia certa por favor) era formado em engenharia. Nenhum deles seria aceito em um competitivo programa de escrita criativa. O resultado dessa academização é o fato de que escritores contemporâneos, mesmo que superficialmente diversos em raça e gênero de forma diferente das gerações anteriores, são incrivelmente similares em crenças e estilos, muito mais que as gerações anteriores. (…) As vendas de ficções contemporâneas são previstas pelo tamanho do universo acadêmico e de seus tentáculos que influenciam a cultura de forma que a prosa voltada para o meio acadêmico (e feita dentro dele) vem com um público considerável embutido”, fala Erik Hoel. Sim, essa é uma realidade norteamericana e não brasileira, mas o questionamento ainda é válido.
(Aliás, nesse mesmo texto, ele fala sobre como a justiça social é uma tema dominante atualmente e eu só consigo sentir constrangimento daquele capítulo ridículo que eu deveria ter deletado do meu primeiro livro, o resquício vergonhoso que me impede de voltar a falar do livro de forma semi consistente nas minhas redes.)
Há novos marcadores também. Quantos seguidores essa pessoa tem? Quantos vídeos viralizaram no TikTok? Ela tem alguma base no Wattpad? (Nada contra, inclusive, como cria das fanfics dos anos 2000, amo escritoras que vieram do Wattpad.) Mas ela é disposta a se expor, a se vender, a ir em feiras, a fazer 5 posts por semana e 10 stories por dia, a mandar mensagens nas DMs? E quantas pessoas assinam seu Substack? Emily Sundberg trouxe um novo rebuliço para a essa nossa casa atual, o Substack, quando escreveu um texto (concordo e discordo) que virou nota dentro do aplicativo, ou novos textos dentro do aplicativo, falando sobre a escrita dentro do aplicativo: “Li newsletters que assino, e depois li newsletters que essas pessoas assinam. Então percebi que, se eu apagasse os nomes dos autores, eu não saberia dizer quem é quem, nem diferenciar os textos uns dos outros. (…) Se dizer escritor porque você tem uma newsletter é a mesma coisa que, há dez anos, se dizer fotógrafo porque tinha aberto um Instagram”. (Mas, de novo, esse papo de onde nascem os escritores fica para um próximo texto.)
Adoro quem se diz alguém que escreve, gosto menos de quem se chama de Artista com A maiúsculo pelo meu próprio preconceito, confesso, do significado por trás dessa alcunha. A Charli xcx há um tempo saiu por aí vestindo no peito a icônica frase: não erguemos estátuas para críticos. O que é um pouco verdade e me fez rir, mas também não me considero crítica (zero paciência, zero habilidade). Só que a frase tem um pouco de brat no sentido original da palavra, que é ser meio birrenta. Se expor é sustentar a crítica, e a tentativa de se blindar se esconde na defesa mais clássica do mundo: você não entendeu nada, você não capta a complexidade da minha arte, eu sou Artista, eu crio e você reclama, quem não sabe criar, critica. (O que não significa que eu não tenha preguiça dessa crítica frustrada que se alimenta do ódio e de falar mal de tudo só por falar mal. Resumindo tenho preguiça de tudo, mas ainda escrevo porque é o que me resta.) O pedestal é a defesa.
(Atualização, sigo espirrando. Se gostasse de Nietzsche, lançaria agora a clássica “humana, demasiada humana”, pelas provas escatológicas da ausência de qualquer pedestal.)
Eis que Ferrante entra na sala. A gata que quebrou a roda, como Daenerys gosta de falar, subindo aos céus (e ao topo da lista de melhores livros da New York Times) dentro do anonimato. Sem likes, sem seguidores, sem sequer um rosto. O que é preciso então para colocar um autor no pedestal?
Para mim, é preciso uma crença e alguém interessado em mantê-la. A crença compartilhada entre público e criador de que acontece mágico, restrito a poucos, que eleva os escolhidos ao grande título de Artista. E o interesse da categoria de que esse status se mantenha, seja para se blindar das críticas, seja para se sentir intocável, seja pela diferenciação, seja pela tentativa de se assimilar às classes mais altas que antes eram as únicas que podiam se dedicar ao fazer artístico, seja pelo ego, seja pelo costume.
A solução óbvia seria, então, a morte do autor? (Ai, essa eu senti no meu ego. Mas juro que no próximo texto, na semana que vem, passa. Aliás, me ajuda no texto? Comenta aqui, me manda um email, uma DM no Instagram, bora conversar?)
Aguardo ansiosamente o próximo o texto.
Nossa! Quero ler o próximo já!