alcateia #37, clube das gostosas tristes
Adeus positividade tóxica, olá otimismo trágico. Com mais de 3 bilhões de pessoas publicando as experiências online, a habilidade de articular a tristeza se proliferou.
- Você parece sempre tão linda e feliz - um cara aleatório me disse em uma noite qualquer em que o som ensurdecedor, em um volume nada saudável para os ouvidos, ficava abafado pela quantidade de corpos na pista de dança quadriculada.
Encostada na parede perto da cabine do DJ, segurava um copo com alguma mistura alcoólica, que logo deixou o gosto encontrar a língua e turvar a mente de uma forma que parecia gostosa, esquecendo problemas, tristezas, eventos, gente. Porque a verdade era essa. Eu não era linda e feliz. Eu era deprimida, doente, viciada e desesperada, trocando o dia pelas noites longas nas casas noturnas de Porto Alegre, de quarta a domingo, até o sol nascer.
Uma vida deprimida me ensinou a humorizar a depressão, empacotar em piadas autodepreciativas que me tornam um pouquinho interessante. Foi na escrita que o processo de romantização da tristeza se personificou. Crescemos no Tumblr do começo da década passada, vendo Skins, maquiando um olhão preto e usando doses cavalares de álcool e drogas. Meu Tumblr se chamava Fuck Nicole, em homenagem aos versos de “o mundo não é justo, só dá pra lidar com o desespero, e aspirina e álcool não são o suficiente pra se matar” que traduziam a angústia adolescente que compartilhávamos.
Com mais de 3 bilhões de pessoas publicando as experiências online, a habilidade de articular a tristeza se proliferou aqui onde a gente vive grande parte do tempo, a internet. Como elabora Rayne Fisher-Quann, “é fácil, como mulher, compactar a doença em um bem de consumo - talhar as arestas da patologia até que se torne nada mais que delineador borrado e sexo perigoso. Trauma de infância vira daddy issues, depressão vira algo místico”. Eu continuo: ideação suicida vira dor de artistas, poético, em cima de um pedestal. Crise maníaca vira maquiagem de fim de noite, after do after, e sexo problemático. Autodestruição vira a hashtag fleabag era. E aqui também transformei a nossa vida de mulheres com depressão em um clube das gostosas tristes, um humorzinho ácido como mecanismo para lidar com a realidade.
Foi com vontade de manifestar o desejo de honrar as musas com depressão e outros problemas psicológicos que comecei o projeto no Instagram, em breve um podcast, talvez tenha newsletter também, assinem lá. O conceito de um otimismo trágico veio do psicólogo Viktor Frankl, que fala que, em vez de dizer sim para a vida apesar de tudo, é possível encontrar sentido no meio de tragédias inevitáveis da existência humana. O próprio termo em Latim, optimum, fala também sobre transformar a tragédia em conquistas. Adeus positividade tóxica, olá otimismo trágico.
Se os anos 2010 encontraram a duck face como marca característica de fotos femininas, a alcunha do olhar vazio com esclera aparente, sanpaku entediado, ganhou o apelido de lobotomy chic. No ano passado, Caroline Reilly escreveu um artigo de opinião para o Washington Post criticando esse tipo de humor autodepreciativo, apontando as problemáticas de uma suposta glamourização de doenças mentais (aqui entre nós, o rebranding de depressão como cool foi tudo que eu pedi para 2024!!!!!!). Mas existe algo de alívio, mesmo em uma libertação resignada, em frases como “queria que fosse 1952 e meu marido me levasse para ganhar uma lobotomia”? Um atitude negativa em relação aos avanços da condição social feminina, um olhar crítico do quão (pouco) avançamos nos últimos tempos? Sim, estamos todas dissociando, não, não é político, e talvez, bom, talvez ainda assim seja válido.
Quando adolescente, eu tinha um medo constante de ser uma pessoa rasa. Mesmo assim, antes da medicação, quando a crise hipomaníaca batia, me encontrava vivendo a vida como uma performance. Tinha decidido beber Martini depois de ver Vanilla Sky para poder usar como bio do Twitter a frase clássica “a garota mais triste a beber um Martini”. Que lindo esse céu de baunilha, que poético esse momento. Conversando com um cara qualquer que eu achava chato e burro (comportamento autodestrutivo detectado!!!!!), ele me disse que era possível aprender muito sobre alguém através do que a pessoa escrevia, e que eu era superficial e só uma menina bonita e aleatória - nada melhor ou mais profundo, nada além disso. (Talvez eu fosse mesmo, ou talvez fosse um ambiente tóxico, ou talvez um pouco dos dois. Sinto que passei grande parte da vida tentando ser profunda. Que desperdício.)
Será que se identificar como garota triste é mais uma tentativa de aparentar profundidade através do rótulo diagnóstico? Essa tendência no protagonismo artístico vem sendo discutida de formas cada vez mais incisivas. Em 2022, Ottessa Moshfegh falou para o The Guardian que “uma coisa que eu noto em relação à atenção que Meu ano de descanso e relaxamento* ganha é que tem um grupo de fãs que se chamam de garotas tristes. Isso me preocupa, vindo de alguém que também foi uma jovem mulher com depressão. Quando minha irmã mais velha leu o livro, ela disse que deveria vir com um aviso de atenção. Talvez deva mesmo. Porque assim, é uma sátira, não é real. Mas a gente vive em uma época em que tudo é tão distorcido que eu não quero ninguém tendo overdose de Zolpidem porque leu meu livro”. Pessoalmente, acho meio bobo acreditar que esse tipo de identificação venha junto com um glamour imbecil que gostaria de viver a vida da protagonista - talvez até um pouco ofensivo insinuar que a leitura de tantas mulheres seja tão superficial? Talvez a pergunta maior seja outra: por que tanta identificação com a depressão incomoda - e por que o algoz é quem se vê no sofrimento, e não as estruturas que causam esse sofrimento? (Alguém tira o viés do materialismo dialético de todos os meus textos, eu não aguento mais!!!!!!) (*releia as 100 primeiras páginas comigo!!!)
A psiquiatra e doutora em psicologia experimental e etologia humana, Fabíola Luz, explica em seu livro O apego dos adictos que, para a psicologia evolucionista, nossas capacidades cognitivas, emocionais e comportamentais também sofrem um processo de evolução como solução de problemas adaptativos, assim como nossas características físicas. Como exemplo, ela explica que a agorafobia, que hoje parece não condizer à realidade de se viver em cidades seguras, é uma herança do ambiente ancestral em que crises de pânico eram consequência dos encontros com predadores e outras ameaças. “Um traço disfuncional nos dias de hoje manifestava-se perfeitamente adaptado. Os sistemas comportamentais foram selecionados naquele ambiente e nele eram funcionais”, explica ela.
Eu sou muito mais gata quando estou medicada. E não é só pelo óbvio do não dormir, não tomar banho e não trocar de roupa, o que deixa tudo ruim: o cabelo, a pele, o cheiro. Não é essa minha versão que aparece nas redes, até porque se eu não consigo nem levantar da cama em períodos depressivos não há a menor possibilidade de levantar para gravar e editar vídeos, especialmente levando em conta que sou preguiçosa até quando estou bem. Mesmo assim, as redes me encontram descabelada, insone, mal dormida, triste. O registro compulsivo da nossa geração permite que a gente consiga fazer essas comparações: essa eu vs essa eu. Mesmo na curadoria do Instagram, cultivada pela nossa insegurança potente e condicionada pelo estado depressivo funcional, nunca o debilitante, dá pra ver a diferença. Ou talvez sejam só as memórias.
No ano passado, o The Guardian trouxe outro artigo refletindo sobre a insurgência de garotas tristes na literatura. Rachel Connoly, uma das autoras entrevistadas, fala que não gosta da ideia de que validar a experiência feminina a partir de um senso compartilhado de vulnerabilidade: “qualquer tendência que nos coloca em um papel inerentemente passivo vai ser questionável para mim”. Mas por que centralizar nossas questões psicológicas precisa ser passivo e não ativo? Por que existe um discurso de que somos um objeto vitimizado pela tristeza, e não um sujeito se apropriando dela?
Outra escritora entrevistada foi Pip Finkemeyer, cujo romance Sad girl novel veste o rótulo no título. “Existe algo problemático em ver millennials privilegiadas lendo millennials privilegiadas que escrevem sobre millennials privilegiadas, mas também existe algo de universal na experiência dessas personagens”, ela fala. Que triste o mundo em que colocar a saúde mental em primeiro lugar seja sinônimo de privilégio - e, ao mesmo tempo, que conectado com uma realidade racista, machista, capitalista, etc etc. (Alguém tira o viés do materialismo dialético de todos os meus textos, eu não aguento mais!!!!!!) Só que não é só isso que ela fala: a tendência de mulheres tristes na literatura não é nova, como A redoma de vidro** e Anna Karenina provam. A popularidade do gênero - se é que podemos chamar de gênero - vem de um desejo de vislumbrar na arte essas emoções que são excluídas da vida diária porque, como mulheres, “não podemos mergulhar nesses sentimentos, mesmo que a gente precise vivenciar essa catarse”. (**releia as 100 primeiras páginas comigo!!!)
O zine Polyester fala que a romantização da tristeza feminina é comum e que “a arte documentou a tristeza feminina sob um foco perverso na beleza”, lançando uma afirmação que prefiro transformar em questionamento: será mesmo que a tristeza feminina só pode ser elaborada sob um olhar distorcido e fantasioso dedicado à beleza das lágrimas das mulheres? Para a autora, ser bonita chorando pode parecer aconchegante em um primeiro momento, mas não é nada mais que uma distração conveniente. Existe algo inerentemente feio em buscar o acolhimento como único objetivo em um primeiro momento? Se a invalidação da tristeza sentida por mulheres é a regra, reconhecer algo de reconfortante não pode ser válido por si só? E não haveria algo de nobre em um esforço por desestigmatizar questões de saúde mental? Ou não passa de uma viagem masoquista de autopiedade? Ou pior: de uma exploração negativa do trauma geracional e individual que mulheres compartilham? De um voyeurismo pornográfico com ares de vingança e prazer pela infelicidade feminina?
Em uma entrevista, James Baldwin fala que temos a tendência de ver nossa própria dor como algo sem precedentes. É quando lemos que encontramos eco nas nossas experiências, que nos conectamos com pessoas ao redor do mundo, vivas ou mortas. Para ele, “um artista é como um historiador espiritual”. Tendo a concordar aqui. Talvez a genealogia de mulheres tristes criando ou sendo representadas na arte sirva como um espaço onde podemos reconhecer nossas feridas, nos conectar com outras gerações, compartilhar uma libertação catártica ou abandonar a ideia de que estamos sozinhas. Tendo a acreditar que há força no retrato de mulheres tristes, em uma narrativa que não só aceita como abraça a complexidade e os paradoxos de variadas experiências emocionais.
E tendo a ler e escrever compulsivamente sobre o assunto, com muito mais dúvidas do que opiniões definitivas. Daí o futuro podcast. Tudo por explorar em conjunto o que faz parte do ecossistema da loucura feminina ao longo das décadas.
Uau, esse texto ficou bem mais longo (e com bem menos coesão) do que o planejado. E pensar que tinha planejado fazer textos com no máximo 6 parágrafos quando abri essa newsletter!!!!
Mas agora vamos ao que importa: você. O que você acha do *gênero* gatas malucas na arte?????
Acho tudo de bom! Quero mais conteúdo sobre essa tristeza inerente! 😊
Sou do fã clube mulheres malucas em todas as artes. É claro que tbm me enfio nesse pacote e não me julgo por isso mais. Quero reler seu texto, as refs me instigaram.