alcateia #03, meu ano de dissociação e não relaxamento
As mulheres mais inteligentes que eu conheço estão todas dissociando. - Emmeline Cline
Há algumas semanas, em um procedimento estético doloroso, a médica me parabenizou: uau, como você é tolerante à dor (eu gosto de ter minha dor validada por estranhos do ramo médico). Obrigada, é que eu tava dissociando.
Entre jovens mulheres de esquerda, nascidas entre 90 e poucos e 2000 e poucos, existe uma tendência de dissociação, que nos traz grandes trabalhos artísticos que vão da tela - “Fleabag” (Prime Video) - às páginas - “Meu ano de descanso e relaxamento” (Ottessa Moshfegh). A exaustão aqui deixou de ser interessante, o que vale é o cinismo, o tédio, o não-aguento-mais acompanhado de ironia e sacadas meio espertinhas e meio superficiais (culpada).
Já há quase três anos, a jornalista Emmeline Clein escreveu: “As mulheres mais inteligentes que eu conheço estão todas dissociando. Notei que muitas dessas mulheres brilhantes, reais ou fictícias, estão desistindo de gritar e lutar, começando a encarar tudo de uma forma mais sarcástica e mórbida.”
Em “A casa de doces”, Jennifer Egan leva a dissociação ao extremo, com abnegações em nome da política, e acompanhamos uma personagem que não só narra em uma terceira pessoa absolutamente distanciada como ensina a praticar a dissociação completa. Ela está pronta para morrer, e anestesiada durante o processo.
Os rituais da feminilidade também podem ser caminhos até a apatia. Skincare não pelo autocuidado, mas sim por facilitar a prática da dissociação. O mundo não vai acabar se eu usar uma vitamina C de 500 reais da Skinceuticals, trabalhei 13 horas hoje mas tá vendo o glow dessa pele com o H.A. Intensifier da mesma marca (não é publi mas podia, cansada de gastar milhões), até briga de relacionamento se resolve ao dissociar com um bom ácido AHA ou tretinoína tópica 0,05%.
Isso não é uma subversão do ritual de beleza imposto pelo patriarcado, e não é resistência. Diferente de como Clein evolui o texto citado anteriormente, eu não percebo intenção política na transformação do discurso de dissociar em #trend no TikTok. Não tem articulação social: é um mecanismo de defesa individual visto a nível coletivo como um sintoma de um problema coletivo. Viver no nosso mundo hoje é desesperador: Lipovetsky já falou sobre se anestesiar para não se horrorizar, e Foucault explanou a docilidade dos corpos como estratégia do capitalismo. Dissociar nem é tão novo assim.
Mesmo não sendo ato político, existem, sim, consequências políticas: “Parece haver um ideal platônico da bela mulher triste. Se as protagonistas irlandesas magras e lindas de Sally Rooney estão tão, mas tão tristes, então eu tenho todo o direito do mundo. Mas desistir do progresso é a epítome do feminismo branco, e promove um niilismo que existe entre o improdutivo e o perigoso”, fala Clein.
A escritora Aurora Muir discute que “Assim como a narradora de Moshfegh e Fleabag, essas mulheres são jovens, magras e atraentes, com um delineador calculadamente borrado. Por que garotas brancas escolheram esse mecanismo para lidar com a situação política do mundo? É o feminismo branco outra vez, insípido, improdutivo, egoísta e apático. Enquanto essas garotas são recompensadas pela espiral destrutiva, quem se identifica como Preto ou Indígena ou está fora dos padrões de beleza, magreza e riqueza não pode se dar o luxo da apatia e da ausência.”
Falando em ausência, eis que fui obrigada a me afastar do trabalho por ordens médicas. Ao longo desse ano e das diferentes questões de saúde que tive - covid, crise de fibromialgia, labirintite e até caxumba - trabalhei sem parar, usando a dissociação como ferramenta essencial. Dessa vez, a sentença foi absoluta: ou tu pára, ou vai dar merda. Entre os exames e visitas hospitalares, as ordens médicas incluíram pegar sol, ficar ao ar livre, dormir, repousar - e só escrever, desenhar ou ler se a vontade cumprir um checklist médico. (A boa notícia: to permitida de escrever esse texto.)
Minha rotina tem sido tomar Zolpidem para dormir já que, na aceleração insuportável que me trouxe noites insones em que não dormi nem um minuto, a expectativa de fechar os olhos e adormecer nada mais é do que uma fantasia. O Zolpidem é um hipnótico que, de forma simplista, funciona diminuindo a velocidade da atividade cerebral - li isso recentemente e na hora entendi de onde vem a paz que eu sinto. Às vezes, estar dentro do meu próprio cérebro é uma tortura. E, finalmente relaxada, de forma vergonhosa por precisar das mesmas bengalas que a protagonista de Ottessa Moshfegh, mergulho em newsletters aqui no Substack, que tem sido de novo uma forma incrível para dissociar. Mergulhar nos pensamentos de outros? Ler entrevistas sobre coisas distantes do meu campo de interesses? Conhecer poesia? Orações? Quadrinhos? Sim, sim, sim.
Se a gente perceber a estética da dissociação como algo individual, entendendo que não é um ato político, talvez seja um mecanismo de defesa válido. Não tem resistência aqui, e perceber isso é essencial para não contaminar a prática política. Mas dissociar é tudo o que eu vejo em mulheres atualmente - ok, precisamos levar em conta o fato de que eu basicamente me relaciono ou sigo pessoas que compartilham de problemas mentais e uso crônico de antidepressivo.
Antes de tudo, dissociar é um sintoma real de problemas psicológicos. Não podemos esquecer, porém, que as trends do TikTok, os textos, os produtos de entretenimento e toda essa estética em volta da dissociação são uma tentativa de trazer contornos para uma tendência comportamental que está se desenrolando no mundo inteiro. Um fenômeno a nível social indica que existe algo muito maior e coletivo acontecendo: já passamos desse ponto, e agora estamos doentes.
Estamos todas vivendo um ano de dissociação e não-relaxamento?
E me conta: qual é sua estratégia de dissociação favorita?
Uau. Cirúrgico, como o procedimento feito.
aprender sobre animais extintos pra não ter q pensar sobre a crise climática