alcateia #31, homens falam mal de Taylor Swift para mim
Taylor Swift sempre esteve entre minhas artistas mais tocadas. Como o desejo da aprovação masculina me fez ignorar isso?
É fim de tarde em São Paulo e a Consolação está parada em um engarrafamento. O ar condicionado do meu carro está forte porque o sol ainda dá os últimos suspiros no dia, e o fim da jornada de trabalho é o que me coloca nessa avenida nesse horário ingrato. O som está no volume máximo e, a cada pausa, começo a cantar e dançar com os movimentos permitidos pelo banco do motorista. É 2017 e o álbum que explode nos alto-falantes estreou em primeiro lugar no ranking Billboard 200, onde ficou por um mês. Reputation, de Taylor Swift, tinha se tornado meu favorito da cantora até o momento.
Assim como muitos dos seus relacionamentos amorosos, minha relação com ela é conturbada. Cresci cercada por amigos homens, na escola e na família, e entendi que ser menino e jogar bolita ou futebol era muito mais divertido do que brincar de boneca. Na briga entre Avril Lavigne e Britney Spears, é óbvio que eu ficaria do lado da menina que anda de skate e fala mal de outras que são superficiais (em outras palavras: femininas). E eu não queria ser como as outras garotas.
Eu era a garota que usava camisetas em vez de sainhas curtas, mas ouvir You Belong With Me me fazia revirar os olhos. “Ainda bem que você não curte música assim e gosta de Green Day”, recebia os elogios com uma pontada de orgulho. Conforme os argumentos foram ficando mais sofisticados, tentativas de análise lírica comparavam suas letras às bandas indies da época, que falavam de drogas e sexo e virar a noite e álcool. No meio da transgressão e da irreverência masculina, por que um feminino tão sincero teria qualquer relevância?
Os jornalistas de música que eu mais ou menos respeitava diziam que “suas empreitadas musicais eram constrangedoras, se tornando um pastiche ao tentar imitar outros artistas”, “para quem certa idade ou formação, ela oferece nenhuma surpresa ou prazer, supra-sumo do genérico, anódino, previsível”, “é um picolé de chuchu que encarna toda a assepsia dessa era da correção política”. Depois de terceirizar a autoridade sobre meu gosto musical aos amigos homens que seriam capazes de atestar minha existência como “uma dos caras”, foi a vez desses homens brancos, mais velhos (que já me disseram que orgulhosamente não escutam música nova desde os anos 90), e mais preconceituosos também com a arte feminina.
Na Pitchfork, bíblia dos fãs de indie e que pelo menos tinha a lucidez de dar notas razoáveis aos discos da Taylor Swift (em ordem: 6.7 - 8.1 - 8.2 - 9.0 - 7.7 - 6.5 - 7.1 - 8.0 - 7.9 - 7.0), Molly Beauchemin usa o documentário de Kurt Cobain como estudo de caso sobre a discrepância de tratamento de homens e mulheres na música: “É provável que o retrato injusto de mulheres venha da visão puritana da mulher como artista, essa ideia desarticulada e pedagógica de que, pelo simples fato de poderem ter filhos, nunca seriam capazes de - e nem deveriam - mergulhar na própria arte da mesma forma de homens. Mulheres que vivem da arte, colocam a arte em primeiro lugar, acima das famílias, são vistas como negligentes, mas os homens que fazem o mesmo são vistos como gênios consumidos pelo trabalho.” (Só fui ler isso muito mais velha.)
Nos anos em que trabalhei na indústria da música, há uma década, ouvia Taylor Swift sem parar. Saindo do show que rolou no Rio de Janeiro, minha ex-chefe da época me mandou uma mensagem: “você foi a primeira grande fã de Taylor que eu conheci, pensei em você durante o show todo”. Fora dos meus fones e do escritório, eu contava outra história. “Eu gosto, mas entendo que musicalmente ela não chega perto de Strokes, Libertines ou Arctic Monkeys”, alegava, acho que até em certo nível acreditava (ew). A aprovação masculina vinha. A grande mulher da geração era Fiona Apple, que havia sido uma bad bad girl, ela mesma quem criava o problema, e não “uma vítima” como era o tratamento midiático destinado à Taylor Swift.
“Ela é desesperada por homem” e “ela se faz de vítima” foram os principais argumentos que homens usaram para me dissuadir de gostar dela. Eu tinha tido câncer três vezes nessa época, era loirinha, e muitas vezes acusada de vítima quando falava sobre o assunto. Eu não queria ser vítima. Rejeitar qualquer uma que se aproximasse dessa postura parecia a melhor estratégia para me distanciar desse rótulo. E então vieram todas as polêmicas com o Kanye West. “É puro vitimismo” e “bitch é um termo carinhoso para ele, quando ele fala não tem maldade”, me explicavam os homens. Foi só muito mais tarde que entendi que a intenção dele não importa quando é uma ofensa para a outra pessoa. “É uma obra de arte esse clipe, essas minas chatas que tão reclamando que ele colocou a Taylor pelada não têm profundidade artística”, homens me diziam, e eu queria ter profundidade artística. Existe um argumento warholiano nesse esforço? Talvez (e o Warhol também era um vampiro). Mas, acima de argumentos, tinha o gosto amargo de revenge porn, a exploração do corpo feminino, tudo sempre justificado por grandes homens de esquerda.
O conflito político chegou para mim com a carta aberta escrita aos serviços de streaming. “Ela é uma gananciosa, filha de banqueiros, cê vai gostar de artista assim?”, eles me perguntavam. A arte por muito tempo teve esse viés de ser feita por amor porque era criada por uma elite que não precisava desse dinheiro para o próprio sustento. E exigir melhores pagamentos dos serviços é ótimo, mas como ele vai ser distribuído? Quem mais precisaria desse investimento são os cantores independentes, não grandes nomes, certo? E, de qualquer jeito, de quanto dinheiro precisamos? “Eu tive zero ansiedade com o novo álbum, já tinha mais dinheiro do que poderia gastar, uma casa minha”, alegou Lorde quando sua fortuna era menos de $20 milhões. Lana Del Rey investiu todo o dinheiro da última turnê nas cidades que a receberam, como agradecimento aos fãs locais (dizem que ela deixou de dobrar a fortuna, em torno de $30 milhões). Na época da carta, a fortuna de Taylor batia quase meio bilhão, e parecia conflitante para minha versão mais politicamente radical defender essa ideia de uma lógica capitalista pura. Mas… ao mesmo tempo… não são sempre os homens os grandes detentores do capital? Dentro desse mundo sem distribuição de renda, não seria um pouco melhor enriquecer outras mulheres?
Na semana do show da Taylor Swift no Brasil, virei a noite fazendo pulseirinhas da amizade. Uma das minhas melhores amigas me lembrou de que duvidei que a Taylor não soubesse que suas masters estavam sendo vendidas. Ela já era minha artista mais ouvida, junto com Lana e Cohen (a santíssima trindade dos meus fones de ouvido, meu deus do céu que #sadgirl), mas era muito fácil acreditar que ela estava exagerando quando era milionária, branca, tinha um histórico midiático complexo e era alvo de misoginia constante pelo círculo que me rodeava. “Como assim o pai dela, shareholder, não sabia que isso aconteceria? O Scooter Braun é um grande filantropo! Ela tá distorcendo a narrativa para ser vítima mais uma vez! Foi uma tentativa de vender mais pra ganhar mais dinheiro porque centenas de milhões não são o suficiente!” Será que foi uma paixão cega pela ideia de uma versão minha que ganharia a tão sonhada aprovação masculina que me fez comprar parte dessa ideia? Nessa época, eu nem sonhava em sair sem maquiagem de casa, quanto mais em me expor assim na Internet.
Foi ficando solteira pela primeira vez em muitos anos que pouco a pouco entendi que o estranhamento que sentia vinha do fundo misógino desses argumentos, misoginia essa que existia um pouco dentro de mim também. Hoje, estive entre os 2% que mais ouviram Taylor Swift, a artista mais tocada do Spotify, no mundo. Não é muito diferente de antes. O que difere é outra coisa: a compreensão de que ela vai ficar pra história como uma grande liricista, assim como Bob Dylan, que ganhou o Nobel da literatura. O desejo de que, como ela fala, esses caras se tornem homens melhores. E a certeza de que arte feita por e para outras mulheres é valiosa - e essas músicas, essa trilha sonora, é transformadora.
Que texto! Na época de Fearless e Speak Now eu falava que ouvir Taylor era meu guilty pleasure, porque não era cool, né? Imagina sustentar com orgulho que ela era a artista que eu mais ouvia no meu last.fm?! Nunquinha!
Depois de Red tudo caiu por terra. Chutei o pau da barraca e me declarei fã de verdade. E foi um processo bem desagradável. Me sentia menos, frívola, infantil por conta da reação das pessoas e da cobrança que eu tinha comigo mesma.
Na época do grande cancelamento paguei de fã obsessiva que defende o artista em todas as situações, mesmo nas mais absurdas. TODO MUNDO atacava ela. Homens e mulheres. Era emoji cobra no twitter inteiro, muito ódio e na época eu não tinha o repertório de conhecimento de violência contra a figurina feminina como tenho hoje. NInguém tinha né. Eu defendia ela porque sentia que a versão dela era abafada. Eu tinha um gut feeling que a história não era bem assim, não tava fazendo sentido.
Hoje eu vejo que ela tava tão ferida, não tinha provas de defesa e mesmo se tivesse não seria ouvida. Imagino só a dor que deve ser passar por isso numa escala tão grande.
É bem louco ver como a artista que eu gostei por tanto tempo e nem tinha com quem conversar sobre furou a bolha e conseguiu acessar tanta gente. Fico feliz porque essas letras merecem ser ouvidas, cantadas, gritadas e amadas. E hoje tenho orgulho de sustentá-la, por anos seguidos, como a artista mais ouvida do meu Spotify.
Reativei - ou melhor, ativei pela primeira vez depois de um uso meramente esporádico - a minha conta nessa plataforma (?) só pra comentar o quanto o seu texto converso comigo!
Passei MUITOS anos da infância sem saber onde me encaixar: baixa autoestima, pressão familiar e inseguranças me impediam de formar laços de amizade e por alguma razão (cof cof mídia em geral, misoginias e afins) achei que eu não me encaixava porque as meninas não eram amigas confiáveis, mas com certeza os meninos seriam. Então, passei a conscientemente "não ser como as outras garotas". Só que tinha um problema nesse comportamento: eu ERA como as outras garotas.
Eu amava Crepúsculo, Taylor Swift e boybands. Eu amava animes de boys love e doramas de romance bobos e mal produzidos. Só que nenhuma dessas coisas era "cool", tudo era "bobo", "não-arte", "não-sério". Então, por mais fã que eu fosse, por maior que fosse o conforto que essas coisas me transmitissem, eu tentava esconder meus gostos e disfarçava os demais traços com outras características - porque é claro que não sou "fútil" como as outras meninas, neh? Foi por volta dessa época que tentei escutar umas bandas de rock que, sinceramente, não sou capaz de listar uma única música kkkkk.
As coisas só mudaram quando entrei num fandom (na época) predominantemente masculino - o de animes - que me fez finalmente entender o óbvio: não importava que eu não fosse "como as outras garotas". Eu ainda era uma garota e nunca seria respeitada como os garotos respeitam uns aos outros. Minhas opiniões nunca seriam levadas a sério, mesmo que eu falasse sobre as supostas "coisas sérias" e as "artes de verdade". Perceber isso foi frustrante, mas também libertador, porque de repente não fazia mais sentido esconder, já que nada adiantava. Foi quando autorizei a mim mesma ser a fã-girl que eu sempre fui. Seu texto me lembrou desse sentimento e fico muito feliz de poder partilhar dessas reflexões!