alcateia #26, estamos lendo menos? ou: cansada da boa literatura
Existe um lugar doce e imersivo que poucos livros conquistam. Que deixam aquela ressaca agridoce e rara dos livros que consomem e alegram.
Chovia em Porto Alegre, e o moletom por cima do pijama era o conforto necessário para enfrentar a decisão do dia: sair de casa. Sem planejar. Sem preparar meu sistema nervoso. Foi só no shopping, em passos rápidos em direção à livraria, que encontrei meu reflexo no espelho. Uma Medusa incapaz de petrificar observadores, os cabelos rodeando minha cabeça em uma confusão descolorida.
O destino eram as páginas de “Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã”, de Gabrielle Zevin, que dormiu e acordou comigo e com meus gatos por dias até que a leitura fosse finalizada. Acho que a coisa mais importante que eu posso falar desse livro é que eu ainda penso nele, semanas depois de virar a última página. Eu tenho lido tão pouco. Mentira, eu tenho terminado livros tão pouco. Desde o ano passado, deixei 47 livros pela metade. Terminei menos de 20. As estatísticas por aí andam cruéis? Ou caminho sozinha com esse fantasma?
(Se estiver melhor por aí, me indica livros.)
“Milk Fed”, da Melissa Broder, foi uma companhia mordaz, meio triste, com piadinhas autodepreciativas que encontraram eco aqui. A narrativa foi elogiada pelos críticos, e a sensação que fica é bem parecida com a que “Meu ano de descanso e relaxamento”, de Ottessa Moshfegh, também deixa. Mas é uma sensação diferente daquela ressaca que vem depois de livros que consomem e alegram. Foi como as 400 páginas do livro de Zevin me deixaram, sonhando por noites a fio (sonho muito com histórias). A sensação é agridoce, e rara, e esse ano foi resultado de apenas três livros: os outros dois foram “A casa de doces”, da Jennifer Egan, de que já falei aqui, e “Via Ápia” de Geovani Martins, do qual espero falar em breve.
Naquela ideia juvenil de tentar classificar as coisas, eu colocava livros em um espectro entre a boa e a má literatura. De um lado, clássicos, narrativas experimentais, maestria textual, personagens complexos, diálogos inteligentes. Do outro, histórias chamadas de entretenimento, acusadas de imaturidade textual, imagens rasas, personagens simplistas e pouca técnica. (Qual é a boa e qual é a má fica por sua conta.)
Achei que andava exaustinha dessa Literatura com L maiúsculo. Especialmente na pandemia: você chegou a sentir isso também? Que a alta arte tinha perdido um pouco de sentido? Busquei seu oposto, esperando finalizar livros com facilidade agora que não precisaria pensar muito - e que delícia não pensar!!!! casamento às cegas é uma obra-prima!!!!! - mas falhei outra vez. Noite após noite após noite iluminei meu rosto com a luz do celular enquanto passava as páginas no aplicativo do Kindle. Encontrei um pouco de sossego nas exatas, terminei um livro de física, mas a realidade era o bastante de modo que abandono grande parte da não-ficção também.
Existe um lugar doce e imersivo que poucos livros conquistam. “Nix” de Nathan Hill, “Pureza” de Jonathan Franzen, “A história secreta” de Donna Tartt, “Ritmo louco” de Zadie Smith, “As garotas” de Emma Cline, “A visita cruel do tempo” e “A casa de doces” de Jennifer Egan. Passeamos com diversas vozes, vivências, personagens. Acompanhamos seu processo de maturidade, vislumbramos um passado e um futuro, mergulhamos em temas - não temas como a teoria indica, “o tema do livro”, mas temas como assuntos - que acendem interesses. Ballet no livro de Zadie Smith, jogos de computador no de Gabrielle Zevin, grego no de Donna Tartt. Caminhamos pelas páginas movidas também pela curiosidade da descoberta de um novo mundo que pode ser o palco de uma nova obsessão de curto ou longo prazo (ou só eu sou obcecada???? duvido).
Queria sair outra vez, descabelada, com a certeza de que me apaixonaria de novo e de novo por personagens, suas falhas e sonhos, mas ando perdida nesse labirinto. Você também? Busca algum lugar para viver por algumas horas? Onde você encontra?
São 00:19 e novas páginas me esperam. Como diria Caio Fernando Abreu (eu gosto de ser clichê), que seja doce.
Reverberou por aqui! Obrigada pela companhia em forma de palavras!
melancólicas fechadas com Clarissa!