alcateia #21, male gaze? female gaze? não, medical gaze
Quando o olhar clínico do médico passa a apenas penetrar o corpo do paciente, avaliando possíveis anormalidades em tecidos e órgãos, existe um processo de desumanização.
Hematologistas, oncologistas, reumatologistas, dermatologistas especialistas em prevenção, dermatologistas especialistas em estética, gastrologistas, ginecologistas, tricologistas, nutrólogos, emergencistas, clínicos, anestesistas, nefrectologistas, diversos cirurgiões, especialistas em câncer de ovário e útero, pneumologistas, proctologistas, cardiologistas, especialistas em ortopedia da mão, infectologistas. Isso não é uma lista de especialidades médicas. Isso é a lista de médicos que viram, tocaram e examinaram meu corpo, às vezes até por dentro. Eu cresci acostumada a receber o olhar analisador de médicos, cunhado como medical gaze.
A ideia desse olhar clínico foi conceituada por Foucault - curiosamente o objeto de estudo de mestrado da minha mãe, médica, que também me destinou esse mesmo olhar em diferentes momentos da minha vida (e doenças). Segundo artigo “Foucault’s Concept of Clinical Gaze Today” (2021), “na história da medicina moderna, uma doença se apresenta como um sistema de sintomas através de uma convenção semântica e morfológica. Esses sintomas encontraram sua nova sintaxe, ‘uma linguagem cuja verdade não se encontra na palavra, mas no ato de observar’.” Quando o olhar clínico do médico passa a apenas penetrar o corpo do paciente, avaliando possíveis anormalidades em tecidos e órgãos, existe um processo de desumanização. “Para encontrar a verdade do fato patológico, o profissional de medicina precisa abstrair o paciente, colocá-lo entre parênteses.”
Essa autoridade suprema personificada na figura do profissional de medicina, somada à desumanização do paciente, também leva a outros tipos de situações problemáticas. Como entender o limiar entre abuso e exame clínico, se você é mulher, o médico é homem, e os toques não são o que você esperava? Por que uma dor de garganta pode levar a ouvir seu coração ou apalpar sua barriga? Medicamente, pode fazer sentido. Mas, se não somos mais seres apropriados do nosso corpo, emocionalmente pode ser difícil.
Emprestei para uma personagem do meu primeiro livro a experiência de quando um médico intensivista se negou a me dar um pedido de exames de sangue, eu de cama há semanas, com medo de um novo câncer, porque, para ele, eu parecia muito nervosa e os sintomas poderiam ser psicossomáticos. Não era câncer, mas não eram psicossomáticos - e minha oncologista que me acompanha há anos foi quem considerou o pedido de exame de sangue sério o suficiente para merecer análise. Já me disseram, em consulta, que pacientes com fibromialgia são muito menos esperançosos, então meu avanço psiquiátrico e acompanhamento psicológico de quase 10 anos foram justificativas para uma dúvida diagnóstica. Será que, se eu chorasse um pouco, o olhar clínico entenderia esse sintoma e abandonaria o julgamento desumanizador?
Existe essa verdade também na abordagem manicomial de tratamentos psiquiátricos, como abordo nesse texto aqui: “é curioso ser rotulado como louco. Qualquer impulso de injustiça, qualquer vulnerabilidade ou vontade é descartada embaixo desse rótulo. A nossa humanidade é limitada.”
Em Natural Causes, um dos meus livros de não-ficção favoritos, Barbara Ehrenreich conta como, em uma idade avançada, era submetida a exames invasivos com o pretexto de protegê-la de possíveis recidivas cancerígenas. Como paciente oncológica, sou também submetida a uma caralhada de exames todos os anos - tantos que às vezes enrolo e o período se estende por dois, às vezes três. Na última bateria, fiz mais de uma dezena de exames variados (faltam alguns ainda) e passei por quase vinte médicos diferentes. Mas, apesar de ser proprietária de uma cútis de 20 e poucos, eu tenho 32 anos. Ehrenreich passou por isso na casa dos 70 e tantos. Seus questionamentos partiam de um raciocínio muito específico: será que ser submetida a tantos exames na esperança de um diagnóstico precoce conseguiria realmente aumentar sua longevidade considerando que ela estava na reta final da vida? Será que se ver livre dessa rotina para viver as últimas décadas em paz não seria mais inteligente - ou melhor, feliz?
No meu novo manuscrito ainda não publicado, apelido o meu corpo de um Frankenstein da medicina evolutiva. Meu corpo passou na mão de diversos profissionais, foi colocado sob anestesia geral por mais de cem vezes, recortado em 7 procedimentos cirúrgicos de diferentes níveis de invasão. Na tentativa de vencer a corrida da morte em um corpo que te trai, não existe fugir da medical gaze. Resignada, pego o telefone e tento marcar os exames que faltam.
Eu fico muito chocada com esses seus relatos e maravilhada com as reflexões que você traz.
Dica de livro: Mortais do Atul Gawande :)