alcateia #15, vale a pena ir para uma clínica psiquiátrica? #review
Eu queria acreditar que eu tinha sorte. Mas eu sabia que o que eu tinha era só um plano de saúde melhor. Essa era a única diferença entre mim e as outras pacientes.
Eu queria acreditar que eu tinha sorte. Mas eu sabia que o que eu tinha era só um plano de saúde melhor. Mais caro. Essa era a única diferença entre mim e as outras pacientes. Essa e o fato de que eu recebia visitas médicas diariamente, e elas passavam três, quatro dias ou mais sem ver o médico.
Os primeiros dias na ala mais fechada da clínica psiquiátrica foram passados na cama, numa sedação intensa. Tinham que me dar comida na boca. A causa foi mistura de antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, estabilizadores de humor. Na última vez que tinha tomado tantos remédios, eu tava com câncer.
É curioso ser rotulado como louco. Qualquer impulso de injustiça, qualquer vulnerabilidade ou vontade é descartada embaixo desse rótulo. A nossa humanidade é limitada, destruída aos pouquinhos, a cada insatisfação. Existe um pacto de silêncio auto inflingido pelas pacientes, porque qualquer vocalização é palavra de gente que não tá sã.
Na ala mais fechada, um quadro gigante mostra o nome das pacientes e o risco que elas representam. De queda, de fuga, de agressão, de uso de drogas. De suicídio. Meu nome era limpo, salvo pelo último. E a exposição pouco importa: pouca gente tá lúcida. E todo mundo ali é fodido. Não tem ninguém pra te julgar.
As horas, que se arrastavam como se contivessem dias inteiros em cada uma delas, torturavam. A gente contava o tempo pelas refeições, e o período entre elas era de espera. O estado de lá é de espera. É curioso, pra alguém como eu, que faço tanto ao mesmo tempo, me encontrar sem nada, nada, nada pra fazer. Sem nada que satisfaça uma necessidade básica de sentir prazer em algo. O prazer é um luxo. Mas conheci pessoas incríveis, passei a maior parte do tempo conversando e colecionando histórias, sentimentos, ideias.
A rotina da clínica, que foi tão bem referenciada em pesquisas pela internet, que se mostrou uma das melhores do sul do país, tem muito a ver com manicômios - e ter ido logo depois de ler (o sensacional) “Holocausto Brasileiro”, em que Daniela Arbex retrata o horror do manicômio mineiro Colônia, foi uma ironia. Guardadas as devidas proporções, esse tipo de visão médica ainda existe e o louco, pra equipe, quando fala, só serve pra validar a própria doença.
Existem muitas profissionais maravilhosas. Mas existem muitas que não se importam com a nossa dor e esquecem de buscar quando pedimos medicamentos, ou que moldam as regras ao seu favor sem se preocupar se nos prejudica, como adiar o horário da ceia e entregar junto com a medicação para facilitar o trabalho, mesmo que todo mundo fique com fome aguardando o atraso, mesmo que o certo seja dar a medicação depois de comer, mesmo que muita gente fique grogue assim que o comprimido desce na garganta dificultando a própria alimentação.
As ligações, pra quem pode receber, duram três minutos cronometrados. São no horário do almoço e da janta, e geralmente encontram um ambiente barulhento que dificulta a troca breve de palavras. Se eu peço pra encostar a porta da enfermaria, me dizem que não. E se assim eu não consigo ouvir nada, me dizem que sentem muito, e viram as costas.
Na ala mais fechada, os tênis são sem cadarço, lápis e canetas são proibidos, tudo pela nossa segurança pessoal. Explodindo de poemas, eu escrevia em letras gigantes com giz de cera vermelho meia dúzia de versos pra guardar na memória esses embriões de poesias. Tem dias em que não tem copo, e se você não encontra uma garrafinha de plástico pra chamar de sua, você fica sem beber água. Tem gente que busca no lixo, lava, e usa.
Eu imaginava que diariamente teríamos grupos de terapia, consultas médicas, psicológicas, atividades. Eu acreditava que teríamos equipe suficiente para que víssemos o sol, fizéssemos caminhadas, buscássemos processos curativos variados. Nos dez dias que passei lá, há 7 anos, participei de um grupo de psicologia com um psicólogo que nos tratou como crianças de 7 anos. A leitura aleatória de novas regras tinha um subterfúgio: alguma coisa tinha acontecido para que ele fosse até lá, falar pra todo mundo que um estupro e uma amor têm a mesma origem, o toque. Descobri depois que era a presença de pessoas bissexuais, como eu, porque se abraçamos uma amiga poderia ser com segundas intenções, e isso não seria permitido.
Pedi pros meus pais levarem o meu celular, proibido, em horário de visita, para que por uma hora eu tivesse contato com a internet - com a vida normal. Pedi isso porque entendi que a saída da clínica pra realidade seria brusca demais. Que ficar dez dias protegida em lugar seguro pra em seguida ser jogada no mundo era menos inteligente do que experimentar coisas que me deixavam ansiosa quando ainda estava em um ambiente protegido. Falei isso pra minha médica. Sabia que o celular era contra as regras, mas falei pra ela, porque queria honestidade no tratamento, porque sou honesta até no desejo de quebrar regras, porque queria ouvir a opinião dela sobre minha interpretação de que ver as redes sociais ainda internada seria melhor pro meu tratamento.
Ela contou isso pros meus pais, que logicamente sabiam, mas contou isso sem conversar comigo antes. Sigilo médico-paciente vira uma piada num lugar em que você é louca com tendências suicidas. Ela contou, e contou para usar isso como motivo pra que minha internação fosse prolongada. Que seguir as regras é parte da cura. Que a desobediência é parte da doença. Que meu passado de adicto mostrava que eu tinha impulsos descontrolados e que não estava conseguindo controlar nem ali dentro.
(Pra quem tá se perguntando, eu acabei decidindo por não usar o celular, porque não queria causar problemas - antes mesmo de a médica falar isso pros meus pais. Continuo acreditando que teria sido melhor pra mim.)
As clínicas psiquiátricas são também uma ferramenta do nosso mundo capitalista e patriarcal, que vê a loucura - essa patologia tão expressiva e sintomática do descontentamento com a realidade injusta - como uma praga, e que busca transformar o louco em um ser obediente. A cura, ela me disse, é ligada à obediência.
Saímos de lá anestesiados, condicionados a saber que com uma campainha é hora de comer, a abrir a boca pra mostrar que tomamos o remédio, a ter medo de ficar na rua depois das 18h, quando as portas fecham, porque eles podem anotar. Eles podem anotar tudo o que você faz de errado. Qualquer descontentamento que gere uma atitude desobediente. E tudo isso prejudica quando e como sua alta pode acontecer.
Minha alta foi a pedido da família, uma atitude que eles condenam. Alta pedido ainda vem um presente: você sai de lá sem receitas e sem nota de alta. Sem saber que remédios tá usando, o que é um direito seu. Você sai de lá regredindo no tratamento, como uma punição por ousar ir contra os magnânimos médicos do lugar.
Tentaram me assustar falando isso, médicos, técnicos, enfermeiros. Eu respondia: “meus pais são médicos, eu tenho cinquenta receitas dessas na hora que quiser, vocês não vou poder fazer terrorismo ameaçando prejudicar meu tratamento”. Mas e as pessoas que não são filhas de médicos? Que dependem dessas receitas pra se tratar? Eu cheguei louca, mas fiquei bem. Nos últimos dias, tava ficando louca de novo. Quantas pessoas prejudicam o próprio tratamento por causa de uma folha de papel que a clínica, cruel, burra, como um manicômio, nos priva? Até quando a opinião do paciente vai ser considerada um capricho de louco? O que nos privam é dos nossos direitos, da nossa dignidade.
Meus pais me tiraram de lá. E foi simples: eu já tinha saído do surto. A continuidade era justificada por um ajuste medicamentoso, processo que minha mãe faz ambulatorialmente com os pacientes dela. Meus pais já haviam articulado consultas e psicoterapia com uma psiquiatra fora da clínica, 3 vezes por semana. Minha mãe tirou licença pra cuidar de mim.
Com tudo isso, a médica da clínica deveria achar maravilhoso que eu tivesse um suporte como esse pra terminar o processo curativo em casa, com meus bichos de estimação, minha família, com tudo que me faz bem. A reação dela foi dizer que isso ia contra os procedimentos da clínica e eu só sairia antes de completar 15 dias com alta a pedido de familiar. Que mesmo com o respaldo da minha psiquiatra de fora da clínica, eles não me liberariam antes desse tempo.
Eu pensei, tentando entender o que faz um médico tão facilmente descartar o bem estar do paciente em nome do procedimento. E então percebi: a clínica tem diárias, que meu plano - tão bom, tão caro - tá pagando.
No fim, a única coisa que eu ainda tenho é minha voz. Meu texto. E por isso que continuo escrevendo.
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E você, já teve experiência em clínica? Como foi? Espero que tenha sido bom. Se quiser compartilhar, comenta aqui ou me escreve - vou adorar trocar essa ideia.
Nunca cheguei a ter uma internação, mas já fui parar numa emergência por overdose e parece tão similar, o que é doloroso. Me fez pensar se realmente nós — pessoas com patologias —, seremos sempre tratados de uma maneira insensível, subhumana.
amei