alcateia #55, existe arte sem monetização do trauma?
É inegável o quanto me desnudo internamente, expondo as vísceras inteiras, pingando o sangue dos minhas mais íntimas experiências traumáticas.
Se existisse, como falam, uma pornografia do trauma, eu seria uma estrela do OnlyFans. É inegável o quanto me desnudo internamente, expondo as vísceras inteiras, pingando o sangue dos minhas mais íntimas experiências traumáticas.
O processo de utilizar as ferramentas de autoexpressão para entender, nomear e elaborar o trauma é explorada em diferentes vertentes da psicologia, porque… funciona. Dá resultados. Nem sempre o trauma precisa ser ressignificado, mas precisa ser regulado internamente para que deixe de nos dominar. Viver o trauma é uma experiência eterna e a sede de vingança - movida por justiça ou vaidade - continua enquanto as feridas não cicatrizarem. As marcas nunca saram (literalmente! no corpo! internas e, às vezes, também externas!). O trauma não tem, afinal, limite de tempo para quem foi vítima (e eu sei bem).
A exploração do trauma alheio de forma sensacionalista é diferente - as imagens de mortes horríveis em Gaza, de crianças passando fome, de imigrantes afogados, todas essas imagens apelativas surgem em uma tentativa de nos empurrar para fora do torpor em que, segundo Lipovetsky, a hipermodernidade nos coloca. Phyllis Feng, uma escritora que segundo sua bio enfatiza honestidade e empatia em seus trabalhos, explica que a demonstração de violência e crueldade na verdade nos anestesia cada vez mais: “exaustas de serem bombardeadas com a dor, muita gente mal consegue sentir empatia, se soterra de desesperança, e se força a arrastar para cima e trocar o vídeo”. Porém, quando falo sobre a exposição dos nossos traumas, nesse texto aqui e agora, é sobre outras coisas: os trabalhos literários e artísticos que surgem das nossas vivências mais sujas, do que fazemos com a nossa própria história sobre a qual somos magnânimos.
Mesmo assim - mesmo com a validade da ferramenta psicológica, mesmo deixando de ser uma exploração apelativa do outro, mesmo abordando uma experiência individual, mesmo sendo uma escolha própria etc - a ideia de compartilhar o trauma (ou, pior ainda, monetizar!) tem uma conotação social negativa. Será que eu falo tanto de ter tido câncer tantas vezes porque quero… conscientizar as pessoas? gerar empatia? ser amada? me expressar? chamar atenção? desabafar? me sentir especial? elaborar a vivência? transformar a dor em algo bom? ganhar dinheiro? Algumas sim, outras não. Nessa matéria do New York Times, o escritor Terry Sullivan fala da arte como uma inegável ferramenta terapêutica, mas, aqui entre nós, eu penso que o dinheiro também é. Ganhar dinheiro por uma desgraça própria é, na minha opinião, uma forma maravilhosa de justiça universal, um curativo na pústula nojenta do trauma. Por que isso seria tão feio? Monetizar o trauma é, pra começo de conversa, uma expressão besta - primeiro por não se tratar de uma exploração no sentido de tirar proveito, mas de se aventurar por caminhos desafiadores, segundo porque qual seria o motivo de condenar um lucro que vem para apaziguar a própria dor?
E agora vem a parte mais importante. Existe mesmo arte sem trauma? Andamos por reflexões sobre traumas pessoais, seja do autor ou do personagem (Annie Ernaux sobre a experiência do aborto e Jennette McCurdy sobre uma mãe perversa) a traumas coletivos (Art Spiegelman sobre o nazismo ou Colson Whitehead sobre o racismo histórico). Os grandes temas da literatura são derivados do trauma: geracionais e românticos, de perda ou de sofrimento físico e mental, de todos os tipos de dor e de morte. George R. R. Martin traduz bem esse sentimento quando fala que a única coisa que vale a pena ser escrita é “o coração humano em conflito consigo mesmo”, e o que seria esse conflito que não uma vivência de trauma? A própria jornada do herói fala de provas, aliados, inimigos, provação - o monomito é uma estruturação da exploração de uma vivência traumática.
Será que Frodo voltou de Mordor pronto para viver sua melhor vida? Será que Harry Potter esqueceu que tinha uma cicatriz até se olhar no espelho? Será que a Arya vai deixar pra trás todas as mortes que viu ou causou para viver um felizes para sempre? Será que a Esther Greenwood, a Anna Karenina, a Ophelia, a Lady Macbeth, a Medéia, o Ulisses, o Aquiles, o… enfim, como será que eles estão, os que não morreram, aliás? E os próprios artistas: o que rolou com Kurt Cobain, Sylvia Plath, Virginia Woolf? E os sobreviventes, como Brtiney Spears e Beyoncé? Alguém passou incólume?
Todos nós somos marcados pelo trauma. Toda arte é marcada pelo trauma. E se alguém ganhar dinheiro com isso… bom, ainda bem.
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"Todos nós somos marcados pelo trauma. Toda arte é marcada pelo trauma. E se alguém ganhar dinheiro com isso…" QUE SEJA EU
Que texto incrível! Obrigada por escrevê-lo