alcateia #53, existe paz sem violência?
A ciência política de Jogos Vorazes e a dúvida: a morte de milhares pode ser justificada em nome de salvar vidas?
(Com spoilers da trilogia, sem spoilers de Amanhecer na colheita.)
No terceiro ato da biografia Maria Antonieta, o autor, Stefan Zweig, escreve: “mesmo a ideia mais pura torna-se reles e mesquinha tão logo concede a gente mesquinha o poder de praticar atos desumanos em seu nome”. O ideal de buscar a paz se torna horrendo quando é mantido por uma ferramenta de dominação pelo medo que envolve colocar 24 jovens em uma arena para matar ou morrer. Na série de livros Jogos vorazes, porém, esse ideal é questionável em ainda mais uma camada: essa paz é para quem? Ela atinge as camadas mais baixas da população ou garante uma dominação da elite que condena o resto do povo à fome e à tortura em uma sequência de violações dos direitos humanos?
A ideia para os livros surgiu quando Suzanne Collins passava de canal em canal na televisão, nos tempos pré-históricos antes dos serviços de streaming, e se deparou com um padrão de imagens intercaladas: reality show, imagens da guerra no Iraque, reality show, imagens da guerra do Iraque. As imagens eram violentas, com aquele fator sensacionalista típico dos canais de notícias dos Estados Unidos. De certa forma, não deixava de ser um reality show com momentos chocantes.
Ao analisar o contexto histórico da semente de manuscrito e o tema de fundo do produto final, guerra e revolução, acabo esbarrando na doutrina da guerra justa, uma tentativa de racionalizar atos desumanos para proteger direitos humanos. Santo Agostinho explica que a guerra justa precisa ter três critérios: ser baseada em autodefesa, reconhecida por uma autoridade oficial que a considere justa, e feita com intenções morais de restaurar a paz. Posteriormente, a doutrina ganhou um critério extra: ser o último recurso, após tentativas constantes de negociações pacíficas.
Em Panem, o mundo imaginário de Collins, não existe doutrina da guerra justa. E, em Panem, os distritos são oprimidos através de vários recursos de controle da elite que reside na Capital, fornecendo todos os itens necessários para a ganância dessa elite. A cientista política Emma Reads começa um dos seus vídeos propondo algumas perguntas, que tento responder com Jogos vorazes.
Existe uma forma de justificar moralmente uma guerra?
Quando falamos de Panem, são diversas guerra que se sucedem. A primeira revolução dos distritos, a retaliação da capital, e, 75 anos depois, a nova revolução dos distritos. Existe retórica para justificar qualquer disputa violenta, seja justa ou injusta: nós contra eles. A guerra às drogas e a guerra ao terror são óbvias, mas a polarização política e a violência localizada - agressões a minorias, por exemplo - são prelúdio de maiores movimentos. Existe aquele dizer em Latim, que coloco aqui no formato de pergunta: se você quer paz, prepare-se para a guerra?
Em Panem, foram 75 anos de pós-guerra, cada um com uma edição dos Jogos Vorazes. Será que nesse tempo não poderia ser considerada a possibilidade de uma nova construção política que prezasse pela igualdade? De levar a paz verdadeira aos distritos? Mas o livro nos mostra que os ditadores da Capital não querem paz de verdade - querem paz para eles, querem recobrar o controle, e, para o resto, querem continuar com a violência policial, controlando os distritos através da fome, usando punições graves como chicote ou assassinato.
Escolher a não-violência te faz cúmplice da violência?
No terceiro livro da série, vemos as consequências de um rompimento que leva a uma revolução em polvorosa. Em certo momento, um cessar-fogo é sugerido pelo Capital. Mas esse cessar-fogo é apenas para o Capital, que se viu vítima, uma vez que os distritos estavam levando a melhor. Nos distritos, embora as bombas possam cessar, ainda há a violência policial e a severa aplicação de leis - e punição de detratores. Em determinados momentos da história - a fictícia e a do mundo real - a não violência protege o estado. Uma herança das lições católicas nos diz que devemos dar a outra face a quem nos agride. Protestos pacíficos de um lado costumam encontrar, ao longo das décadas, violência policial do outro.
Em Como a não violência protege o estado, Peter Gelderloos escreve que as vitórias reivindicadas por pacifistas são deturpadas: “a mudança vem de todo o espectro das táticas presentes em qualquer situação revolucionária”. Para ele, a independência da India é creditada aos protestos liderados por Gandhi, mas houve iniciativas de violência também ao longo do protesto: os britânicos perderam o controle colonial ao perder tropas, lutas armadas em regiões tangenciais enfraqueceram a supremacia britânica, e a própria resistência pacifista não foi homogênea no país, que contou com atos revolucionários violentos também. Nos Estados Unidos, não existiria o sucesso de Martin Luther King se não houvesse Panteras Negras.
Talvez, antes de tudo, devemos fazer a pergunta: existe revolução sem violência?
A morte de milhares pode ser justificada em nome de salvar vidas?
Em O príncipe, Maquiavel defende uma ideia que pode ser sintetizada na famosa frase de que os fins justificam os meios. Mas antes disso é preciso um fim, um desejo por poder, uma retaliação. E um paradoxo intrínseco à retórica: a busca pela paz é bélica, a vida de alguns defende a morte de outros, e quem define quem merece morrer, quem merece atacar? Jogos vorazes explora dois lados dessa moeda: o desejo de liberdade e o desejo de controle. De um lado, a Capital, através da figura do Presidente Snow, busca a dominação e a exploração dos distritos, baseado em uma justificativa que envolve retaliar o passado, impedir ações futuras, e manter todos os cidadãos sob controle. Do outro, temos a líder da revolução, muitíssimo bem nomeada Coin (“moeda”, em inglês), que utiliza a busca pela libertação como justificativa para armadilhas que buscam eliminar inocentes e é, ela também, uma tirana. E vem a pergunta: existe mesmo paz após a guerra? A guerra ao Iraque veio da guerra do Afeganistão e virou guerra à Síria, depois ao Iran, e cada tirano deposto é substituído por um novo. Até mesmo a revolução francesa, com seus nobres ideias de liberdade, fraternidade e igualdade encontrou uma ditadura na sequência.
Mais para o fim da trilogia original, a presidente Coin, vencedora absoluta da revolução, sugere fazer uma última edição simbólica dos Jogos Vorazes, com as crianças da elite da Capital. A protagonista, Katniss, reflete: “foi assim que aconteceu? Setenta e cinco anos atrás? Será que um grupo de pessoas sentou e votou para começar os Jogos Vorazes? Houve dissidência? Alguém pediu misericórdia e foi vencido pelo clamor pela morte das crianças dos distritos? (…) Todas aquelas pessoas que eu amo estão mortas e nós estamos discutindo os próximos Jogos Vorazes em uma tentativa de parar de desperdiçar vidas. Nada mudou. Nada vai mudar”. Será que sempre vamos justificar a morte de muitos pela vida de alguns? Não apenas em guerras, mas na desigualdade social e nos mitos de meritocracia?
Quais são os limites da autodefesa e a partir de qual ponto se torna agressão?
Matar é a única saída para não morrer quando se está na arena dos Jogos Vorazes. Que vença o melhor, o suprassumo da meritocracia. Ou não: a ideia de que todo mundo é igual na luta pela vida é uma premissa falsa - mesmo fora da Capital reina a desigualdade. Os distritos mais ricos criam suas crianças com treinamentos constantes para que se tornem tributos fortes e resistentes, chegando aos Jogos Vorazes com grandes possibilidades de vencer. Já para os distritos mais pobres, que mal sobrevivem dentro do seu próprio mundo, ir para a arena é uma sentença de morte. Aqui é claro que matar seria o único caminho. Ainda assim, alguns resistem, outros partem com orgulho para a missão. Da mesma forma, a legítima defesa sob um ataque direto parece incontestável.
Dentro da arena, essa discrepância se exacerba. Os Jogos Vorazes começam com uma Cornucópia onde estão armas, alimentos e muitas ferramentas úteis de sobrevivência para qualquer competidor. Quando chegam lá, aqueles mais preparados - e com mais alianças de cumplicidade entre os mais ricos - correm para garantir suprimentos. Os mais pobres, se quiserem garantir alguns desses bens, são convidados a participar da primeira grande cena desse reality show: a batalha sangrenta da Cornucópia, de onde dificilmente sairão vivos. Caso virem as costas, estão abandonando qualquer chance de segurança fornecida pelos presentes da Cornucópia. Isso mata a única vantagem dos distritos mais pobres: eles sabem sentir fome, eles sabem passar dias com restrição de água, comida, sono, conforto. Os Jogos Vorazes, que deviam ser jogos de sobrevivência, perdem a essência para quem garante todo o conforto proporcionado pelos presentes adquiridos. Como Rue e Katniss sabiamente concluem no primeiro livro, “o problema é que eles não estão famintos”.
Mas se a história - a fictícia e a real - nos sugere que a guerra é o único caminho da paz, essa paz sempre vai ser o prêmio de quem nasceu no lugar certo, na hora certa, no país certo, com o exército certo. E isso realmente é paz?
Esse é mais um texto de dúvidas, não de respostas. O que você acha? Como você responderia essas perguntas?
O que eu penso sobre isso se resume na resposta do Ghassan Kanafani quando um entrevistador o indagou por que não apenas conversar com os líderes israelenses e ele lhe respondeu "esse é o tipo de conversa entre a espada e o pescoço".