alcateia #40, eu amo falar de mim?
Sou um dos meus assuntos favoritos. Criar narrativas que analisem minúcias da minha história transforma o sofrimento em objeto de estudo, deixa tudo mais tolerável. Mais interessante.
Na primeira revisão do manuscrito do meu próximo livro, veio o retorno: usar menos a palavra “eu”. O apontamento literário era sobre o vício de linguagem, não sobre a insistência em me ter como tema, porque o texto todo é uma viagem ególatra na minha tragédia pessoal: as cinco vezes que tive câncer, os outros tumores, as muitas cirurgias e cicatrizes, as síndromes raras. Falar de mim era a ordem do dia. Mas, simbolicamente, inaugurou um raciocínio interno: eu amo falar de mim. Sou um dos meus assuntos favoritos. Criar narrativas que analisem minúcias da minha história transforma o sofrimento em objeto de estudo, deixa tudo mais tolerável. Mais interessante.
No Rio Grande do Sul (aliás, doem), existe uma regra implacável na hora de beber chimarrão em roda: uma vez por pessoa. Nos poucos meses em que consumia a bebida clássica do meu estado, inventava uma roda raiada: uma vez alguém, uma vez eu, outra vez outro alguém, mais uma vez eu. Fui filha única por 7 anos e era gracinha uma menina fazendo isso. Pois é: aprendi a entender o mundo a partir da minha experiência. Se vou falar da tragédia do Rio Grande do Sul, a narrativa vem do meu sentimento em relação a isso: sinto isso, penso isso, defendo isso. Ao ouvir causos de pessoas, meus conselhos vêm com anedotas pessoais, com as lições que vivi, com o que eu percebo como próximos passos. Me uso de exemplo para erros e possibilidades de caminhos, ofereço minhas histórias como fábulas. Como poderia ser diferente? Se somos o que melhor conhecemos no mundo, será que, em vez arrogância, isso não seria humildade? Reduzir o conselho à vivência pessoal não seria justamente apresentar o viés do que é exposto? Ou é só um tipo diferente de se comunicar? Ou é neurodivergência? Ou é mesmo só ego?
A cacofonia das pessoas à minha volta é a trilha sonora do texto. Sinto a mão úmida do copo de Coca Zero gelada, meu gato branco tenta chamar minha atenção. Esse fenômeno está aqui, nesse texto, enquanto o mundo se desenha em volta. Retornando a São Paulo após meses, encontro a cidade em que me senti em casa pela primeira vez e, no trânsito que vai de Congonhas a Pinheiros, imagino o discurso que vai se transformar (se o deus do conteúdo permitir) em vídeo no TikTok. A vontade histriônica de se expor encontra o palco perfeito no meu amado mundo digital. Vanessa Guedes escreve que “há uma romantização em fazer o nosso ‘eu’ virar um eco interessante” no maravilhoso texto A sedução da narrativa pessoal. Ela define a prática como autoteoria (ou literatura brasileira de internet) e de novo penso em mim: sou eu que estou ali. Enquanto o texto dela traz um narrador externo que analisa um fenômeno, me coloco dentro do fenômeno e minha perspectiva serve de ponto de partida para a interpretação. Ainda assim, sempre me pergunto: quem é que vai querer ler sobre minha vida, minha percepção? Minha curadoria ou meu repertório teórico-cultural eu entendo, mas minha vida? Minhas escolhas boas ou ruins?
Rosa Montero, no fantástico O perigo de estar lúcida, declara que não gosta de escrever autobiografias e prefere ficção. Ainda assim, o livro é uma sucessão de suas experiências, uma investigação de suas curiosidades, exemplificadas com suas anedotas. É, de certa forma, todo biografia.
O ensaio cria uma correlação entre escritores e suas origens, características, comportamentos, problemas mentais. A ânsia de falar de si vem da vontade de vomitar as centenas de vidas que existe aqui dentro? É parte da necessidade de compreender o mundo através da nossa experiência? (Gosto de falar, gosto também de ter esse tipo de dúvida.) Mas, talvez, o conceito apresentado pela autora mais adequado para essa conversa é a desibinição cognitiva. “O cérebro demora a amadurecer. (…) Pois bem, há um certo número de pessoas nas quais não ocorre esse amadurecimento cerebral. Os neurotransmissores falham em algum momento e a mente não é podada como deve, (…) nas pessoas mais criativas essa inibição não ocorre,” escreve. Somos todas umas sem-vergonhas?
Criando um conteúdo para Obvious, encontrei o dado de que existem dois tipos de comunicadores. Um tipo fala abertamente, voluntaria informações e acredita que a outra pessoa fará o mesmo, já que vê a conexão acontecendo quando ambos contam um pouco de si e aceitam mostrar a própria vulnerabilidade. O outro tipo prefere se abrir apenas quando questionado diretamente e escolhe fazer perguntas em vez de contar sobre si, por isso também espera ser perguntado ativamente antes de falar. Sou o primeiro tipo. Todos somos autorreferenciais, mas tenho plena consciência que essa é minha bússola. Acho que quem gosta de se expor também se encaixa nessa categoria. E talvez escritores também, pela tendência, facilidade e vontade de expressar histórias. Vocês gostam de falar de vocês? E vocês se expõe na internet? Vamos tentar fazer uma pesquisa.
Defendo a exposição online para quem gosta, vejo como uma forma de expressão genuína em que podemos encontrar um espaço no mundo para apresentar nossa versão mais exagerada de nós mesmas. “Tem sempre uma confidência da satisfação que acompanha a atenção positiva da internet. É meio bobo se sentir envergonhado por isso, porque é um fato simples e muito humano: ser apreciado é gostoso, saber que seus pensamentos e opiniões evocam o interesse alheio é algo legal. Falamos o que falamos porque essas coisas parecem importantes o suficiente para merecer a exposição”, escreve Charlie Squire para o zine Crybaby.
Quando mostro alguns textos pro meu namorado, com frequência ele pergunta: qual é a mensagem por trás desse texto? Músico, com suas letras trazendo o eco de pensamentos profundos unidos com uma mensagem clara, ele me pergunta qual mensagem quero passar, o que me motivou a escrever aquele trecho. Não tenho uma boa resposta. Na maior parte das vezes (senão todas), é fazer uma viagem interna, uma investigação sobre um interesse pessoal. No fim, gosto mesmo de falar de mim, ou no mínimo me guiar pela bússola das obsessões e curiosidades que ressoam aqui. A escrita acaba sendo algo muito simples, muito mais corriqueiro do que passar uma mensagem (que responsabilidade seria): no fim, é tudo só a busca por saciar uma vontade. Minha vontade.
Como trabalho essencialmente com a escuta da narrativa alheia, quase sempre acho interessante quando alguém opta por se abrir dessa forma. Ia dizer que não curto muito me expor, mesmo entendendo que é muito difícil não fazê-lo, até mesmo em um comentário assim :)
o tempo todo fico pensando se não estou falando demais de mim nas minhas newsletter, mas são minhas vivências, angústias e reflexões, sobre quem mais falaria se me conheço tanto e ainda quero me entender mais?? adorei a forma que você trouxe esse tema!