alcateia #38, você já editou seu corpo?
Já estive em uma cama no bloco cirúrgico mais de cem vezes, onde dormi o delicioso sono da anestesia.
No Photoshop, no Facetune, na sala de cirurgia? O Brasil é o país com o maior número de plásticas no mundo todo, com 1.5 milhões de cirurgias por ano (ISAPS e SBCP, 2023). Você já editou seu corpo?
Eu já, e carrego no peito (literalmente) essa escolha.
Mas quero falar de outros tipos de edições (ai, meu deus, não aguento mais falar de saúde). Já estive em uma cama no bloco cirúrgico mais de cem vezes, onde dormi o delicioso sono da anestesia. As edições reais foram algumas: hoje, tenho um dispositivo perto da clavícula, tirei pedaços de órgãos, tirei órgãos inteiros. Há vinte dias, um cirurgião cortou as minhas costas, arrancou um pedaço de osso, invadiu o tecido que reveste os nervos e retirou um tumor.
Sou uma super-heroína de cirurgias. Vim ao mundo com o pacote recuperação perfeita em velocidade épica. Dessa vez, por motivo que não entendo, não foi ativado. A cirurgia extensa e profunda deixou um corte de quase 20cm que demorou a cicatrizar. Um acidente de percalço levou a uma pequena necrose da pele, que interfere ainda hoje no processo cicatricial. Um corte necessário de um nervo deixou uma sequela tímida no pé esquerdo, que pouco a pouco retoma sua habilidade total. Reações passadas me impediram de tomar os mais potentes analgésicos, e uma reação presente me fez parar de tomar o segundo melhor: me trouxe aftas e úlceras que cobriram metade da minha língua e boca. A quantidade de remédios mexeu com meu estômago problemático gerando ainda mais enjoo. A minha síndrome super rara do tecido conjuntivo teve as dores pioradas pelo corpo todo. As enxaquecas voltaram. A falta de força marcou as semanas.
Todos os dias, vivia um jogo de escolhas para entender qual desconforto seria melhor naquele momento: a dor de se levantar para pegar o remédio ou a dor de esperar que alguém viesse e pudesse me dar o remédio; a dor que não aguentava os remédios ou o enjôo de encher meu estômago de mais remédios; a dor no corte de dormir em uma posição ou a dor crônica da síndrome por dormir em outra; a dor no estômago de fome ou a dor na boca de comer; e o desespero de que já devia estar melhor, vou precisar mais tempo fora do trabalho, que absurdo, tudo é chato, nenhuma série me distrai, preciso de quatorze horas de sono porque meu corpo tá se recuperando, que tédio insuportável, eu só queria poder fazer alguma coisa. Ainda tenho dor. Percebi que a dor irradia do lugar onde o osso foi retirado, em uma mistura doida de dor óssea, fascial, muscular, conjuntiva, cutânea e nevrálgica. Respira fundo, vai passar.
Já editei meu corpo, algumas edições ainda no DNA, a nível genético, em uma construção diferente de grande parte das pessoas. Outras, na infância, na adolescência e na vida adulta, às vezes por consequências dessas mudanças e outras não. Meu corpo é um Frankenstein da medicina evolutiva, uma Bella Baxter com um figurino menos legal.
Não costumo fazer isso, esse texto é um desafo. De alguém que edita textos, mas que é editada - com faca, palavras e remédios - o tempo todo.
Poetisa. Transforma a dor em arte ❤️