alcateia #29, de 1 a 10, quanto dói?
“Depois que uma pessoa vive com dor crônica por 5 anos, você fica louco. Eu não conseguia lidar com nada”, fala Kurt Cobain. Eu não me lembro do último dia em que não tive dor.
“Depois que uma pessoa vive com dor crônica por 5 anos, você fica louco. Eu não conseguia lidar com nada”, fala Kurt Cobain. Eu não me lembro do último dia em que não tive dor.
Uma vez, na emergência do hospital, me fizeram a clássica pergunta “de 1 a 10, quanto dói?” e eu respondi 8. Na minha escala pessoal de dor, que inclui câncer, enxaquecas que me apagaram, fibromialgia e cirurgias especialmente dolorosas, a dor que eu sentia naquele momento era um 8. A moça me disse: tá bom, segue a linha verde. O problema era que eu não conseguia caminhar de tanta dor. Na minha escala, um 8 estava perto de me impedir de me locomover. Minha escala estava claramente quebrada.
Em The body in pain, Elaine Scarry escreve que a dor não tem voz, que a dor mata a linguagem. No seu maior extremo, vira um grito primal, uma expressão ininteligível. “Quando a fonte da dor é visível, mostra para todos a que é real. As frases que descrevem os acidentes são mais bem sucedidas em transmitir a dor do que o relato da agonia pessoal que tenta explicar a dor diretamente. Para mim, a pior parte é não ser compreendida ou não ser levada a sério. Sentir dor é ter certeza. Ouvir sobre a dor é ter dúvida.”
De acordo com o Instituto de Medicina dos Estados Unidos, dor é o principal motivo para consultas médicas, e 100 milhões de pessoas no país sofrem de dor crônica. A maioria é mulher. “A gente ainda não tem a resposta de por que enxaquecas são mais comuns em mulheres, mas sabemos que mulheres são mais suscetíveis a todas as condições de dor e que não são levadas a sério, recebendo tratamentos menos eficientes e mais fracos”, explica Janine Clayton, pesquisadora do centro de saúde da mulher do instituto.
Esse problema central de que médicos não costumam ver a dor feminina como válida mostra a interferência da função social atribuída ao paciente, o gênero desses sintomas. Em A body, undone, Christina Crosby relata que o trabalho de se apresentar coerente e merecedora de confiança e atenção é exaustivo. Mulheres morrem por terem ataques cardíacos cujos sintomas foram invalidados. Esperam em média entre 15 e 30 minutos a mais em serviços de emergência por terem seus casos considerados como menos urgentes. Não recebem os mesmos remédios potentes para dor.
Mas não é só o lado social que está em jogo. Nessa entrevista, um médico explica que existem fatores biológicos nessa diferença da experiência da dor entre gêneros: “Os hormônios sexuais, o ciclo menstrual. Algumas evidências sugerem que durante o período reprodutivo esses sintomas são mais exacerbados. Existem ainda diferenças no sistema de controle da dor e do sistema endógeno de opióides no cérebro, além de marcadores genéticos.”
Das minhas dores físicas pessoais, fibromialgia é a que mais tortura o dia a dia, mas talvez seja a menos grave. Câncer pode matar, enxaqueca por derrame cerebral pode matar, mas a fibromialgia só pode matar quando se desiste de viver aquele sofrimento. Essa doença crônica de pouco contorno diagnóstico é perversa. Considerada um tipo de incapacidade e critério de prioridade em diversos estados e cidades do Brasil, é tema de vários projetos de lei que querem inclui-la na legislação de PCD.
De todos os tratamentos que me ajudam, agulhamento neurofuncional é o melhor. Ainda bem que minha mãe é especialista, senão seriam fortunas investidas em ter um tipo de dignidade que deveria ser o mínimo para os seres humanos. Mas muita gente já vive essa realidade sem - ou com pouca - dor. E aí vem mais uma injustiça: o impacto financeiro é só mais um fator de desigualdade que é imposto sobre quem sofre de dor. A fadiga crônica, a dificuldade de adaptação a determinadas exigências da nossa sociedade, as imposições da lógica capitalista como um todo: tudo fica um pouco mais cruel por aqui. (Mais uma vez, obrigada mãe, te amo mãe.)
E daí existem os remédios. Os melhores na redução de sintomas - não necessariamente com menos efeitos colaterais - são os opióides, parentes próximos da heroína. (Inclusive, fato curioso: a heroína foi desenvolvida pelo laboratório Bayer como uma alternativa menos viciante à morfina. Não deu certo, claramente.) Mas a correlação entre suscetibilidade a vício em opióides e pacientes com dor crônica vem sido estudada - e não se trata de uma suscetibilidade genética ou comportamental. É a exposição contínua a esses fármacos que se apresentam como a melhor alternativa no alívio dos sintomas que cria essa realidade. De certa forma, a dor é precursora desse tipo de vício em muitos casos. É curioso pensar que fibromialgia pode ser fator de risco para overdose* (*exagerando pela dramatização). Embora eu não compre essa justificativa (mas quem sou eu para julgar?), Kurt Cobain relata que seu vício em heroína foi uma consequência da dor crônica que sentia: “se eu já me sinto como um viciado, posso muito bem me tornar um, só que sem dor.”
A ausência de dor é uma condição médica perigosíssima. Considerada um sinal vital, a dor é uma resposta evolutiva que nos protege de diversos riscos, como um alarme de evacuação em um incêndio. E é um sintoma ótimo para exploração. Nessa excelente reportagem da New Yorker, que virou documentário pela HBO e série ficcionalizada pela Netflix, é exposta a relação entre a riqueza impressionante da família Sackler e seu envolvimento na crise de opióide dos Estados Unidos através de campanhas de marketing e desinformação promovendo seu infame remédio OxyContin. Na corrida contra a dor, o enriquecimento de quem se aproveita é consequência. E será que, nessa corrida, mesmo a morte pode parecer uma solução? Quando fiquei internada na clínica psiquiátrica, parecia que sim: conheci uma quantidade de pacientes fibromiálgicas, algumas que tentaram suicídio.
As relações sociais também sofrem: como Alphonse Daudet observa em In the land of pain, a dor perde a originalidade para as outras pessoas. Se torna algo comum e banal. Apenas continua sendo nova e sofrida para quem sente. E os sintomas indiretos da dor crônica como irritabilidade afetam qualquer relacionamento. Na newsletter Startling Ground, a autora Becca elabora um sentimento que quem sofre de dor compartilha: “A dor diminui tanto a quantidade como a qualidade das experiências.”
Será que existe uma lição nisso tudo? E mais: será que precisamos de lições para lidar com momentos difíceis? Becca se questiona: “Será que minha dor é significativa? Me concede acesso a algo transcendente? Ou só é degenerativa? Mas existem grandes artistas, filósofos, escritores e líderes que sofreram de dor ou doença crônica. A dor não é única, e o sofrimento é universal.” Só que, como ela mesma diz, a doença só significa algo depois que você melhora.
Mas lembrando aqui: a medicina estudou, por muito tempo, todos os sintomas tendo um homem médio como referência. Isso está felizmente mudando, mas ainda não é uma realidade: a dor tem sexo e raça. Então como elaborar em linguagem esse significado? A única forma de recobrar a linguagem é saindo do estado de dor. Em que mundo isso seria lido como a retórica de alguém são? Rayne Fisher-Quann descreve a dor psicológica de uma forma que funciona bastante bem para a dor física: sem evidências visíveis, a dor feminina é considerada loucura.
E por aí, de 1 a 10, quanto dói?
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Leia mais:
• esse post que eu escrevi para Chapadinhas de Endorfina
• o artigo Pain in Women's Health: A Multi-Faceted Approach Toward Understanding no Medscape
• o quadrinho A Story About Pain da Aubrey Hirsh
• o texto The paradox of listening to our bodies de Jessica Wapner para New Yorker
• o livro The invisible kingdom de Meghan O’Rourke
Esse seu texto é meu império romano. Acho que é a terceira vez que leio em um curto período.
Eu amei teu texto!