alcateia #28, cinquenta tons de literatura
“Qual é o problema de você ler um livro e ficar excitada? Se um homem compra uma Playboy ninguém fala nada.”
(originalmente publicado no UOL em janeiro/2021)
Para ouvir lendo: “Campo de morango”, da Luisa Sonza
Livro que excita
“Qual é o problema de você ler um livro e ficar excitada? Se um homem compra uma Playboy ninguém fala nada” é o que fala Juliana Dantas, 42, uma das autoras de romance mais vendidas da Amazon. Dos seus 32 livros, 7 chegaram ao primeiro lugar na lista de e-books mais vendidos entre todos os gêneros.
Juliana Dantas é formada em marketing, quase concluiu uma segunda graduação em produção editorial, trabalhou na Livraria Cultura e na Editora Kapulana até largar a carreira tradicional para escrever romances e se autopublicar na Amazon. Em 2019, seu livro No silêncio do mar foi publicado pela Harper Collins, uma gigante do mundo editorial. Não que isso seja o maior selo de reconhecimento de sua carreira: com 80 milhões de páginas lidas no Kindle Unlimited, o selo da publicação tradicional não parece mais tão impressionante.
“A experiência com a Harper Collins foi muito diferente, porque fora da autopublicação o controle não é mais todo seu. O livro é meu, do editor, de todo mundo que participa do projeto. Adorei trabalhar com eles, aprendi muito”, garante a autora, que nunca havia se imaginado vivendo de livros. “Em 2016 publiquei meu primeiro livro na Amazon. Em dois dias estava em primeiro na lista de livros eróticos e em dez dias ganhei o dobro do meu salário na editora. Quando meu terceiro livro chegou em primeiro na lista geral, pedi demissão.”
Já Jéssica Macedo, 24, que só em 2019 publicou 15 títulos e teve 2 em primeiro lugar na lista de mais vendidos, sonhava alto: “Quando publiquei o primeiro livro em 2010, minha visão de leitora era que ia chegar em todos os leitores e que ia ser fácil. Veio a frustração de descobrir que não era assim”, conta. A desilusão não durou muito. Hoje, ela tem 40 milhões de páginas lidas e uma rotina de 6 a 8 horas de escrita por dia. “Chego a escrever um livro em 15 dias”, conta ela, que bate perto do meio milhão de reais em ganhos.
Mas o maior fenômeno dessa literatura é Nana Pavoulih, 46, que acumula 150 milhões de páginas lidas, 100 mil ebooks vendidos e 90 mil cópias físicas. Já publicou por editoras tradicionais como a Rocco e a Planeta, tem contrato com a plataforma de audiobooks Storytel, direitos de suas obras foram comprados para o cinema e para a TV pela Globo, e o seu faturamento dos últimos 5 anos é de quase 2 milhões de reais. “Me orgulho de todos os meus livros, amo o que eu faço, amo com paixão, com intensidade. Quando eu escrevo, me divirto, me excito, rio, choro, é uma coisa muito rica, muito viva”, garante. “A sexualidade se tornou muito mais livre com a literatura erótica.”
Cinquenta tons de revolução
Para muitos, a história começa em 2011, quando uma fanfic do livro Crepúsculo chega ao Brasil. O best-seller mundial é Cinquenta tons de cinza, de E. L. James. “Quando descobri que seria publicado pela Intrínseca, eu fiquei: será que a editora sabe do que é esse livro?”, fala Juliana, rindo.
Danielle Machado, editora executiva da Intrínseca, concorda que romances eróticos não são o foco da editora. “Fazer apostas editoriais e ser uma editora sem preconceitos é parte do nosso DNA”, ela fala, “E Cinquenta tons de cinza aconteceu assim. Vimos uma grande oportunidade de publicação e foi um livro que quebrou paradigmas, derrubou barreiras.”
“Foi uma revolução”, concorda Juliana. “Foi o divisor de águas para muitas mulheres. A gente tava acostumada a ler na surdina e de repente tinha mulher lendo no metrô. Cinquenta tons de cinza fez o romance romântico virar mainstream, antes só era encontrado em banca de jornal. Eu lia desde os 12 e achava que era uma subcategoria. Quando fiz produção editorial, já tinha lido clássicos, lia os livros da faculdade. Ainda gostava de romance de banca, mas tinha muita vergonha”.
Na livraria, por ser a única a ter interesse na área, acabou sendo referência. “Lá dentro, a estante do gênero era chamada de estante das tiazinhas safadas, super pejorativo. Isso foi até mandado em e-mail corporativo, a gerente ficou brava, não achou legal”, conta dos bastidores. Suas histórias sobre ser livreira na época são muitas: teve a vez em que um pai foi comprar o livro para a filha de nove anos, tinham pessoas devolvendo o exemplar, horrorizadas porque tinha muito sexo, e muita gente que ia comprar e não sabia do que se tratava.
Há ainda uma reflexão social pertinente - para nós que lemos também, mas principalmente para a produção cultural. “Hoje em dia estamos vivendo enormes preconceitos, que se reacendem quanto mais queremos derrubá-los” garante Danielle. “Acho mais triste o preconceito em não se apostar nesse tipo de produto do que o que vem do leitor em si. A gente quebra preconceitos quando começa a mostrar que eles não têm razão de existir. Quer dizer, na sua bolha particular você pode gostar e não gostar do que quiser, mas não precisa barrar a escolha dos outros.”
Ligações perigosas
Os holofotes, a conversa e a abertura podem ser novas, mas esse tipo de literatura não é. Consagrada há anos como romances de bancas, a literatura erótica aparece na cultura popular já nos anos 90. Em um episódio de Friends, Joey encontra um livro de Rachel e começa a ler: “é um livro de sacanagem!”, ele constata. “Antigamente, mesmo, antes das bancas, romances eróticos já eram best-sellers em outros países, já tinham uma base fiel de leitores e leitoras. Se não me engano, Robert Darnton tem uma pesquisa sobre a literatura erótica francesa no século XVIII ou XIX”, fala Taize Odelli, podcaster no Ppkansada e criadora de conteúdo literário. Taize já passou pela Companhia das Letras, contribuiu para veículos como a Revista Amálgama e Posfácio, e é uma das resenhistas convidadas do livro Por que ler os contemporâneos? da editora Dublinense.
A visão elitizada e idealizada do livro como obra de arte muitas vezes ignora de que se trata, também, de um produto. Aliás, toda arte: a obra mais cara do mundo, de Leonardo da Vinci, foi leiloada a 450 milhões de dólares. E controvérsias sobre romances eróticos também não são novidades. Ulysses, de James Joyce, parou nas cortes dos Estados Unidos por conter obscenidade. Trópico de Câncer, de Henry Miller, foi proibido nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, e quando uma cópia ilegal chegou em Nova York em 1940, o responsável ficou preso por 3 anos.
Em 1782, era publicado na França As ligações perigosas, de Pierre Choderlos de Laclos, um dos primeiros romances eróticos da história de que se tem notícia. O filme Segundas intenções, de 1999, é uma adaptação do romance francês. Nele, há o embate entre a protagonista inocente (Reese Whiterspoon) e a femme fatale (Sarah Michelle Geller) que, em uma das cenas mais icônicas, declara que “Não há problema em caras como você transarem com todo mundo. Deus me livre uma mulher que exala confiança e gosta de sexo. Você acha que eu gosto do fato de ter que agir como Mary Sunshine 24 horas por dia, 7 dias por semana, pra ser considerada uma dama?”
Para Taize, o fato de serem livros eróticos lidos e voltados para mulheres aumenta ainda mais o preconceito. “Como se narrativas que tratam das crises existenciais do homem médio fossem mais relevantes do que narrativas que tratam de desejos tão comuns quanto o sexual. É um problema de quem se prende ao cânone”, explica. Jéssica Macedo concorda. “Toda a literatura de entretenimento sofre preconceito. Me formei em cinema pela UFMG e via a mesma coisa. Eu lembro que falava pro meu professor que queria fazer filme de shopping, agradar o público.” Mari Sales, 34, com 30 milhões de páginas lidas, ainda brinca: “Quer sofrer, faz terapia, pra livro a gente vai pra outro universo”.
Para driblar esse preconceito, instituições literárias resolveram criar categorias especificamente para literatura de entretenimento. Foi o caso do lançamento do clube Inéditos da TAG Livros e da nova categoria do Prêmio Jabuti. Enquanto algumas autoras como Juliana consideram que essas ações demonstram que o romance erótico está sendo aceito pelo mercado tradicional, outras autoras discordam. “Acho que é uma tentativa de inclusão, mas que representa o preconceito citado acima. Porque se não houvesse tal preconceito e uma espécie de separação por parte de alguns leitores elitistas, não haveria necessidade dessas categorias”, fala Cinthia Basso, 26, que coleciona mais de 30 milhões de páginas lidas na Amazon.
“Essas iniciativas colocam o romance erótico e de entretenimento como uma subcategoria, uma coisa à parte”, fala Nana. “Você sabia que não entram livros eróticos no ranking geral da Amazon? Pode entrar livro de assassinato, serial killer, mas erotismo não”. Taize completa: “Entendo o raciocínio que tiveram, essa tentativa de dar visibilidade para livros que não seguem o modelo da narrativa literária. Mas foi muito mal executado. Livros de outros gêneros têm a mesma importância e capacidade de concorrer a um prêmio no mesmo patamar com o que eles consideram ser válido como literatura. Dostoiévski é entretenimento, Machado de Assis é entretenimento, Clarice Lispector é entretenimento”.
O prazer é todo nosso
As críticas, porém, vão além de discussões subjetivas sobre o que é ou não é literatura de qualidade. Explorando questões como virgindade, homens dominadores e situações que podem ser consideradas como beirando o abuso, muito se comenta também sobre o possível machismo em replicar esse tipo de dinâmica. “Acho que toda a reflexão sobre feminismo e machismo é válida. Através da reflexão entendemos o que estamos lendo e o nosso entorno”, fala Danielle. “Acho que também precisa se levar em conta que a literatura erótica desperta discussões sobre o prazer feminino, e despertar discussões é a função da arte.”
“Diz-se muito que a indústria pornográfica, por exemplo, é uma visão do homem sobre o sexo, uma visão fabricada, longe da realidade, que pode ser danosa. O romance erótico voltado para mulheres pode ter alguns dos mesmos problemas”, pensa Taize. “São críticas válidas, que mostram que por trás do prazer que o livro se propõe a narrar há problemas que precisam ser discutidos. A questão é como são discutidos. Por isso precisamos de autoras e mais livros sobre o tema para fazer narrativas diferentes, precisamos de vozes diversas para mostrar outras formas de sexo e de relacionamento.” Mari conta que gosta de brincar com o clichê inverso também. “Gosto de trazer desde a mocinha mais submissa até a mais empoderada. Mas essa dinâmica da mulher tendo que ensinar tudo pro homem é muito perfil de mãe. Isso eu faço com meus filhos!”
Quando entendemos que livro também se trata de um produto, precisamos entender que a venda é importante. “Quando trabalhava como publicitária em agência, precisava pensar em coisas como o mercado, o público-alvo. Trouxe isso pra literatura”, conta Jéssica. “Temas como a mocinha virgem, máfia, bebês e um homem que muda a vida pela mulher estão muito em alta. As leitoras querem encontrar um relacionamento idealizado, algo que elas não encontram na vida real”. Mari completa o pensamento: “A gente entende que o livro é uma mercadoria, um produto, mas também uma obra de criatividade.” Para Taize, faz sentido. “Vamos ser honestos: histórias como Cinquenta tons de cinza falam muito mais com o público geral do que um clássico da literatura. Justamente porque não se colocam como algo fora do alcance do consumo desse público geral.”
Do que as leitoras gostam
Em um grupo do WhatsApp de leitoras da Jéssica, 100 meninas chegam a trocar 20 mensagens por minuto. A comunidade de Nana no Facebook soma mais de 10.000 leitoras. “Muitas viram amigas” garante ela. E as estatísticas são impressionantes. Apenas no primeiro semestre de 2020, foi feita uma conversa no WhatsApp com dezenas de pessoas que já leram de 46 a 109 livros. Em uma pesquisa feita em 2017 com leitores fora dessa comunidade, a média de leitura anual foi de 7 livros, o que é 22 vezes menor do que os dados levantados na comunidade de romance erótico.
Uma das explicações para isso pode ser a facilidade e fluidez da leitura, mas a excitação é um fator impossível de se ignorar. “Nós abordamos a aceitação da mulher com seu corpo e sua sexualidade como um todo, o que as choca a princípio, caso ela nunca tenha lido algo do tipo, e depois as liberta, transformando a sua sexualidade em algo perfeitamente normal, ao invés de um tabu que a sociedade impôs”, fala Cinthia.
“Tenho muitos relatos de leitoras que contam que a vida sexual melhorou muito” completa Nana. “Às vezes, as pessoas acham que algo é errado de se sentir ou até pensar, e, quando ela vê em um livro, ela se sente mais aceita, percebe que é normal”, porque, afinal, também é sobre abrir a mente. Em uma sociedade que cerceia o prazer feminino, isso é fundamental. “Eu não tenho a mente aberta, eu tenho a mente escancarada”, garante Nana.
No fim, faz todo sentido. O que essas autoras escrevem é exatamente o que o público quer. E isso Jéssica traduz em uma só frase: “Elas gostam de ler homens que dão prazer!”