alcateia #24, estou morrendo desde que tenho 12 anos
Filosoficamente, todos estamos, desde que nascemos. O processo da vida é o da morte. Mas eu estou de fato morrendo desde que tenho 12 anos, quando o primeiro diagnóstico de câncer chegou.
(para ler ouvindo “God Bless Our Dead Marines” de Silver Mt. Zion / você pode assistir a uma versão desse texto aqui)
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Estou morrendo desde que tenho 12 anos de idade.
Bom, de certa forma, filosoficamente, todos estamos, desde que nascemos. O processo da vida é o da morte — da deterioração celular fisiológica de forma que, mesmo sem acidentes, crimes, negligências, armas ou suicídios, nosso corpo eventualmente desiste de viver.
Mas eu estou de fato morrendo desde que tenho 12 anos.
Foi nesta idade que o primeiro diagnóstico de câncer chegou, em vez da carta de Hogwarts que eu tanto esperava.
Ele veio em uma nuvem febril de 42ºC, uma doença oportunista, dores articulares e um exame de sangue que implorava por uma biópsia de medula. Eu estava sentada na cama do hospital quando meus pais me contaram que eu tinha leucemia, já internada há alguns dias. Eu lembro de não entender muito bem o que aquilo significava, de me preocupar se sairia a tempo da gincana da escola, e de perguntar se eu iria morrer.
Minha mãe respondeu sem hesitar: “não”.
Desde então, nunca tive esse medo.
De certa forma sou, como Harry Potter, a garota que sobreviveu — mas, no meu livro, Voldemort, o vilão da série criada pela britânica J. K. Rowling, nunca morre, e a cicatriz queima de forma imprevisível: os diagnósticos continuam a chegar. Alguns falsos positivos (ufa!) e, ainda assim, cinco vezes tive câncer. As partes do corpo você escolhe: rins, ovários, o próprio sangue, com as células malignas correndo soltas pelo meu corpo.
Eu pedia ao anestesista: injeta o propofol bem devagar e tentava descrever e gravar na memória a experiência de perder a consciência. A anestesia geral é uma semimorte, diferente de um sono, muito mais próxima de cessar de existir temporariamente do que de qualquer outra coisa. Há anos tento pegar essas sensações que se espalham em volta de mim, segurar numa caixinha e traduzir em palavras.
Primeiro, vêm as mudanças sonoras. Elas ocorrem como ecos distantes que vão de um lado para outro na sala em uma cadência regular, variando o volume, aumentando a reverberação, e as palavras perdem pouco a pouco o significado. Eu mantenho os olhos abertos até o ponto em que aguento, querendo perceber cada novo desfoco, cada linha que fica difusa enquanto o foco vai se perdendo e a fotografia da minha vida vira um borrão de cores com uma única luz acima de mim. Podia ser a luz do fim do túnel de tantos relatos de morte, mas é só a iluminação principal da sala cirúrgica. Assim, eu apago.
Outros venenos entraram, com o rótulo de remédio. As enfermeiras e técnicas precisam de cuidados extra quando administrando determinadas quimioterapias pelo risco tóxico que aquela substância, que pinga lentamente nas minhas veias, pode ter ao tocar a pele delas. Li em uma reportagem na New Yorker que um desses remédios é apelidado de Diabo Vermelho. Outro foi inventado como uma arma química, usado pelo Reino Unido, pela União Soviética, pelo Império Japonês e outras nações em diversas guerras espalhadas pelo século XX. Mais recentemente, tem sido usado pelo ISIS.
Usei um remédio que me transformava em uma pré-adolescente com Parkinson, tremendo sem parar. Cada xícara de café se transformava em uma sinfonia de porcelana se batendo. Outra droga me fez ter um derrame cerebral pela sua alta toxicidade. Teve também uma que me deixava parcialmente cega pela ardência intensa no globo ocular. E outra me fazia sentir o sangue pulsando nas artérias. Eu sentia cada supetão da aorta e das artérias principais dos braços, nos capilares nas pontas dos dedos das mãos, uma sensação absurda e desconfortável e que fazia um barulho tão alto dentro do meu corpo que eu não conseguia dormir à noite. Eram ondas oceânicas do meu próprio sangue indo e vindo aqui dentro. Eu pensava em soltar o acesso e deixar, pelo plástico habilmente puncionando a veia, o sangue jogar até me esvaziar.
Enquanto isso, jogava xadrez, escrevia e lia livro seguido livro em longas internações que, na minha memória, sempre parecem ter acontecido no inverno, pelo frio do ar extremamente filtrado que nos protegia de tudo.
Eu imprimia as páginas dos longos protocolos quimioterápicos (seus nomes eram “BFM 95”, aos 12 anos, e “HYPERCVAD”, aos 16) e carregava sempre comigo. No fim, eu tinha quase de cor. Seria uma boa série de TV, a criança que discutia posologia de igual para igual com a diretora de oncologia do Hospital de Clínicas do Rio Grande do Sul.
O câncer em si já foi descrito em trabalhos sérios de Susan Sontag, Cory Taylor, Audre Lorde, Anne Boyer. Grandes mulheres que tiveram câncer.
Só que eu fui uma pequena criança que teve câncer, antes de todo o resto.
Quando me perguntam sobre como é ter câncer, analiso os anos após anos em busca de uma boa resposta, mas percebo que eu não conheço nada diferente para comparar. A vida com câncer é tudo o que conheço. Conto o tempo através de câncer. “Ah, esse foi o livro que li quando estava internada no hospital pela segunda vez.” “Comecei a estudar teoria feminista no fim do terceiro câncer.” “Lembra aquela vez que a gente viu aquele filme quando eu estava na recuperação daquela sexta cirurgia?”
Ah, é, tem isso também. Meu corpo é um mosaico de cicatrizes, um Frankenstein da medicina evolutiva que mexeu na minha garganta, nos meus seios, no meu diafragma, no meu intestino, nos meus rins, no meu útero, nos meus ovários, no meu peritônio, e tenho certeza que alguma coisa estou esquecendo. Eu sempre esqueço, é difícil lembrar quantas vezes as lâminas entraram e saíram daqui. Desenvolvi um carinho pela anestesia geral — pelo menos nesse ponto entendo Michael Jackson, viciado na substância — depois de ter passado por isso mais de cem vezes. Dá um barato, eu juro.
Só que como eu posso desenvolver ferramentas para entender tudo isso que foi feito com o meu corpo quando eu não tinha ferramentas nem para entender quem eu era?
Eu não sou uma mulher adulta como Sontag com anos de teoria nas costas encarando pela primeira vez uma doença desafiadora. Eu sou uma mulher com anos de doença encarando pela primeira vez a teoria.
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Esse é um trecho do manuscrito do meu último projeto.
Nossa, sinto muito por você ter passado (e estar sempre na espreita) disso tudo. Um amigo meu aqui em Berlim descobriu recentemente estar com câncer e eu, um pouco hipocondríaca, sempre acho que vou ter câncer em algum momento. Vivo com esse medo à minha volta. Mas, o texto é genial e quero também ver esse livro no mundo. <3
você é simplesmente genial! fiquei bad com o relato e agora ansiosa pelo livro aaa