alcateia #22, dá pra ter burnout de beleza?
A hashtag #nofilter do filtro cirúrgico: não precisamos de alterações digitais quando temos intervenções estéticas de diferentes níveis invasivos para que a gente possa ser mais bonita… naturalmente.
Os corpos das mulheres renascentistas e barrocas costumam aparecer nus e macios, exaltados em sua forma que contradiz o que conhecemos como padrão de beleza desde o século XX. A distância entre as mulheres de Botticelli, Vermeer ou Rembrandt foi ficando cada vez maior com o passar do tempo, e encarar a deusa em Vênus e Adônis de Rubens como a expressão suprema da beleza é de um estrangeirismo total para a contemporaneidade da magreza extrema.
Mas existe naquela divindade do amor ainda algo que buscamos de forma incansável, e cada vez mais, representada de forma primorosa pelas pinceladas perfeitas de um pintor virtuose do Barroco flamengo: a pele perfeita, homogênea, macia e radiante como só uma Afrodite, detentora de juventude eterna e da maior beleza do mundo, poderia ter.
Ainda encarava minha pele como uma tela, como as de Rubens, em que as pinceladas certeiras poderiam, com a combinação química certa, serem o suporte da mais bela pintura de todas. Eu sou filha de médicos, e ouvia o tempo todo sobre a complexidade do corpo. Mas eu queria que ele fosse estático, controlável, imóvel, e pudesse ser moldado ao meu dispor. Como eu já falei aqui, as idas e vindas do meu corpo são muitas, tem histórias nas minhas cicatrizes.
A beleza passa pela loteria genética, por esforços disciplinados, e por investimento financeiro. No primeiro capítulo de Aesthetic labour: rethinking beauty politics in neoliberalism, Ana Elias, Rosalind Gill e Christina Scharff escrevem o seguinte:
O corpo, assim como a psiquê, é o resultado de um engajamento intersubjetivo. Na pós-modernidade, conforme o capitalismo global transforma o mundo em um só, cria-se um corpo que diminui as diferenças (embora não completamente), e cria-se uma feminilidade marcada por esconder o trabalho na criação desse corpo. Esse trabalho é tão integrado à feminilidade que muitas vezes somos ignorantes em relação aos nossos próprios processos. (...) Mas vamos complicar, vamos olhar em outro nível de construção do corpo. Por que o corpo, como é, se torna tão incapaz de nos satisfazer ao ponto de precisar de atenção e trabalho constantes? (…)
As mulheres adultas vivem pressões e contradições relacionadas ao corpo. Precisamos mostrar que somos jovens, porém que conhecemos muito do mundo, porém inocentes. Precisamos decorar e transformar nosso corpo, porém sem mostrar o tempo, dinheiro ou trabalho necessários. Precisamos mostrar que nossa beleza é natural, profissional, sexy, despreocupada, disponível, desejável, fofa, divertida, capaz e saudável, tudo ao mesmo tempo. O labor estético colonizou nossos corpos e, como todo tipo de labor, os significados criados a partir disso e do nosso corpo são complexos. Estamos gerenciando os conflitos entre autonomia e autoexpressão em um momento de grande comercialização de corpos [na forma de capital social]. O neoliberalismo transforma todas nós, não apenas quem trabalha como modelo, em empreendedoras estéticas.
A dominação social do corpo feminino em geral atravessa a história, da maternidade compulsória ao espartilho do século XIX. Hoje, grande parte dessa opressão se dá através do número indicado pela balança. Foucault, em A microfísica do poder (1979), explica que o poder disciplinar é um método que permite o controle minucioso das operações do corpo e que assegura a sujeição constante de suas forças, impondo uma relação de docilidade-utilidade. Esse poder disciplinar acontece através de efeitos de verdade produzidos a todo instante pela sociedade ocidental: são verdades invisíveis com efeitos de poder que nos atam, induzidas pelos mecanismos de poder e servindo-os de substrato.
Bourdieu, quando discute poder e dominação simbólica, percebe que os dominados contribuem para a reprodução da opressão pois incorporam suas regras: assim, nós, mulheres, também somos instrumentos da perpetuação desse padrão. “Para que a dominação simbólica funcione, é preciso que os dominados tenham incorporado as estruturas segundo as quais os dominantes percebem que a submissão não é um ato da consciência, suscetível de ser compreendido dentro de uma lógica das limitações ou dentro da lógica do consentimento, alternativa cartesiana que só existe quando a gente se situa dentro da lógica da consciência”, Bourdieu fala em Novas reflexões sobre a dominação masculina (1996).
Faz sentido que os esforços em prol da beleza ganhem cores de diversão - pra mim, não tem nada como relaxar passando uma hora na frente do espelho fazendo as maquiagens mais doidas que eu conseguir pensar. E isso não é ironia. Ser bonita dá trabalho - e é doloroso, muitas vezes. Quando, nos anos 60, mulheres se uniram para queimar sutiãs, não foram isso que queimaram. Como Susan Brownmiller conta em In our time: a memoir of a revolution, nem mesmo houve fogo: ainda assim, sutiãs, produtos de maquiagem, saltos altos, cílios postiços e outros “artigos de tortura feminina foram jogados na lixeira da liberdade”. (Alexa, coloca Pretty hurts da Beyoncé pra tocar.)
Quando estudei história da arte na faculdade, as discussões sobre a definição de estética eram infinitas. No manuscrito do meu próximo livro sobre o câncer, escrevo:
Quando eu tinha 16 anos e chorei efusivamente porque meu cabelo caiu, as enfermeiras me contaram histórias de uma moça muito bonita que tinha perdido o cabelo e continuava se maquiando todos os dias, com um sorriso no rosto, sem nunca perder a alegria. Depois, ela virou modelo e estava na televisão. Todos os dias eu via comerciais em que ela aparecia. Anos depois, descobri que eram histórias inventadas, que ela tivera surtos de raiva no hospital, quebrara tudo por não aceitar a perda do cabelo. (…)
Mas mesmo na doença a beleza é de extrema importância para as mulheres. “De acordo com Hesíodo, no casamento de Cadmus e Harmonia em Tebas, as Musas cantaram versos em honra da noiva e do noivo [...] ‘Apenas aquela que é bela é amada, e aquela que não é bela não é amada’” é como Umberto Eco começa A história da beleza, discutindo como a beleza é relacionada a valores de justiça, harmonia e equilíbrio desde a Grécia Antiga. A etimologia da palavra beleza elucida uma questão relevante: sua origem como sinônimo a características elogiosas não estava exclusivamente relacionada à aparência física, e foi ao longo dos anos que a palavra se direcionou cada vez para esse aspecto.
A ideia da feiúra me era tão vulgar que, quando a professora de história de arte (um beijo, Paula Ramos, te amo) indicou que lêssemos A história da feiúra, do mesmo autor, fui direto para o outro: ler a beleza parecia ser muito mais seguro, como se me protegesse de entrar em contato com uma das maiores aberrações para mulheres. Até as campanhas de publicidade (e eu entendo disso, há 10 anos é de onde vem o meu dinheiro), mesmo quando (teoricamente) inclusivas, não se arriscam a se afastar: é sobre a real beleza, nunca sobre ser feia e foda-se. É sobre ver a beleza em si mesma, sobre entender que todos os corpos são lindos, que tudo pode ser belo dependendo de quem olhar. A feiúra continua sendo um tabu. E a beleza mata, literalmente: seja por distúrbios alimentares, por racismo ou por misoginia. As consequências nefastas desse regime político deixam marcas literais no nosso corpo.
De todos os tipos de beleza, a natural parece ter o maior status. As mulheres sem maquiagem são as mais bonitas, os cabelos naturais são os mais bonitos. Mas o “sem maquiagem” na verdade é uma maquiagem pouco perceptível, ainda assim com bochechas rosadas, lábios hidratados, pele homogênea e cílios curvados (eu sou a rainha do “no-makeup makeup look”, 12 produtos para parecer que nasceu assim), e os cabelos naturais na verdade são tingidos para esconder os brancos e sempre lisos ou, no máximo, ondulados.
A gente vive na era da hashtag #nofilter quando o filtro é cirúrgico: não precisamos de alterações digitais quando temos no nosso arsenal de ferramentas botox, preenchimento labial (culpada), harmonização facial, silicone (culpada), fios de PDO, Sculptra para deixar a bunda maior, Kybella para diminuir gordura localizada, alongamento de cílios, unhas de acrílico, e outras intervenções estéticas de diferentes níveis invasivos para que a gente possa ser mais bonita… naturalmente.
O investimento na nossa aparência não é só de esforço, é de dinheiro também: vejo homens à minha volta guardando dinheiro para viagens e investimentos, e eu calculo que o Ultraformer no rosto é quase 3.000, que isso vai ser um custo anual, e depois botox, bioestimulador de colágeno, repor o preenchimento labial, minha rotina de skincare caríssima da Skinceuticals (I swear by them), cuidados com o cabelo platinado, hidratante forte pra pele sensível do corpo, e ainda bem que eu compro pouquíssima maquiagem ou roupa porque vai ser… mais de 10 mil por ano para ser mais bonita? Como eu vim parar aqui? (Se você como eu tem pensamento crítico mas também gosta de bons produtos, meus favoritos estão aqui para você comprar!!!! #capitalismo)
Quando eu coloquei silicone, com 19 anos, e não me arrependo!!!!!!, eu cheguei em casa e abri o MSN (se você não sabe o que é, finge que sabe pra eu me sentir jovem) para falar com minha amiga Amanda. Não acreditava que estava vivendo tanta dor e tinha gastado tanto dinheiro para ficar mais bonita. De lá pra cá são quase 15 anos, milhares de reais e uma dezena de textos autorais com maior ou menor profundidade sobre a indústria da beleza. O nosso tempo também é sequestrado em uma dedicação diária que é, em média, de pelo menos 1 hora, entre cuidados com a pele, cabelos, maquiagem e escolha de roupa.
A estética se manifesta como labor, a beleza é o deus cujo altar erguemos, e ser bonita é um trabalho constante da existência feminina. Dá pra ter burnout? Talvez. Provavelmente. Dito isso, tá na hora de bater o ponto.