alcateia #19, a vida apesar de tudo #christianef
“A gente se encontrou num café, Christiane F. chegou uma hora atrasada”, Sonja me fala por Skype direto de Berlim.
• Quando o muro de Berlim caiu, há exatos 25 anos, ela preferiu ficar em um quarto com heroína do que ver a história sendo feita - com a justificativa de que “uma vez aberta, a fronteira estaria assim no dia seguinte”.
• Quase cinco milhões de cópias foram vendidas pelo mundo inteiro e o livro foi leitura obrigatória na Alemanha por muito tempo.
• “Heroína é parte de quem eu sou, como poderia me arrepender? Ela me fez rica, me fez famosa. Eu viajei no jatinho do David Bowie, e tudo por causa dela”.
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Décadas depois do livro Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, veio A vida apesar de tudo. Foi Sonja Vukovic quem co-escreveu, e com ela que eu conversei.
“A gente se encontrou num café, ela chegou uma hora atrasada”, Sonja me fala por Skype direto de Berlim. “Eu fiquei surpresa porque eu sabia que ela era a viciada mais famosa do mundo, mas quando ela chegou eu só pensei que ela era tão linda. Unhas feitas, lábios vermelhos, cabelo pintado. Ela estava muito bem para uma mulher de 50 anos, realmente bonita, e, como era inverno, ela usava um casaco longo e luvas, muito elegante”, continua, descrevendo a versão adulta de uma adolescente que foi obcecada com a própria aparência, se entregando a dietas para manter o corpo esguio e magérrimo. “Ela sentou e pediu uma água com gás e suco de maçã, e então tirou as luvas. Foi a primeira vez que a reconheci, porque nas mãos você podia ver onde as agulhas estiveram, todas as cicatrizes”, explica.
A impressão que fica, lendo os relatos muitas vezes ansiosos, é que Christiane sentia coisas demais e a própria sensibilidade exacerbada foi sua armadilha. “Christiane percebe com uma intensidade singular tudo que se passa ao seu redor, às vezes com a velocidade de um raio. E com a mesma intensidade capta várias emoções que a deixam com os nervos à flor da pele. Quem puder observar Christiane como ela observa o mundo à sua volta talvez a compreenda”, são as palavras de Sonja no livro. Para mim, ela elabora: “Nunca conheci uma pessoa tão sensível quanto ela. Tinha dias em que nos encontrávamos e só de olhar pra mim ela perguntava: ‘você brigou com seu namorado?’. Quer dizer, ela olhava e via que meu coração estava doendo. Ela também é muito criativa, ela ama escrever, cantar, música! E artistas... todos os seus namorados foram artistas de alguma forma”.
A relação entre arte e drogas aparece até onde a gente não espera. Argumento que o sentimento artístico é a fonte de um sofrimento e que esse sofrimento leva às drogas, e não que a droga funcione como catalisador, ao que ela concorda. “Esses tempos vi uma entrevista com um grande artista alemão e ele disse que acha que arte só pode existir porque o artista sente que não pertence ao mundo e que o mundo não pertence a ele. E a arte é criada através do esforço de tentar explicar o mundo para si mesmo. A arte é o resultado de tentar entender o mundo e as pessoas, e acho que isso se encaixa com Christiane também”.
Sonja começou a trabalhar com jornalismo aos 14 anos, e, com 16, em uma viagem aos Estados Unidos, acabou presenciando o 11 de Setembro e escrevendo algumas reportagens sobre o tema. Na época que conversamos, ela tinha menos de 30 anos, um livro publicado, e o Grimme Online Award, prêmio de jornalismo mais importante da Alemanha. O projeto que recebeu esse reconhecimento se chama Little Berlin e conta a história de como o Muro separou famílias e amigos em uma vila de 54 pessoas entre Turíngia e Bavária, funcionando como um microcosmo da capital alemã.
Seu primeiro livro também trouxe outras experiências: Sonja passou a trabalhar na Fundação Christiane F., de prevenção contra o vício. “Mas a gente não fica falando pros viciados irem para clínicas de reabilitação, não é assim que funciona. O que nós fazemos é criar discussões sobre valores e sobre vício como algo intrínseco à humanidade. Queremos que eles tenham mais confiança, queremos dar opções para que eles saiam do vício. Oferecemos projetos em que podem trabalhar com a gente, para voltar a encontrar sentido e lentamente se livrar da doença”, ela explica.
Sonja me ensina uma palavra em alemão: tugend. “Significa algo como... tolerância, amor, reconhecer os problemas no mundo... ser gentil. Não sei se existe uma boa tradução específica”, ela se desculpa. Essa palavra é o que resume o trabalho que ela faz, também no blog que mantinha no site da revista Stern: “Quero ajudar as pessoas a serem mais tolerantes e gentis consigo mesmas e com as outras”.
Antes de nos despedirmos, pergunto qual é a mensagem que ela gostaria que as pessoas recebessem desse livro. “A mensagem…” ela começa a pensar. “Sabe, quando o primeiro livro surgiu, Christiane era muito nova e de repente era muito famosa no mundo inteiro. Todos acharam que a história tinha um final feliz, ‘ah, agora ela tem uma chance, ela tem dinheiro e tudo’, mas na verdade, e eu sei que você sabe disso, as pessoas não largam o vício só porque se tornam famosas. Você precisa encontrar as razões do seu vício se você quer parar, fazer terapia, buscar a cura...” Agora, ouvindo a entrevista outra vez, penso também no recente vídeo em que Fernanda Soares reconta - e reflete sobre - a história de Christiane. Em 2021, uma nova série sobre Christiane foi lançada. Parece que a história nunca acaba, nunca é esquecida, nunca some.
Sonja continua: “E a segunda coisa é que ela ficou conhecida como a junkie mais famosa do mundo, então todo mundo chega e diz ‘e aí, você ainda usa drogas, sim ou não?’, ou ‘qual foi a pior coisa que aconteceu com você?’, então essa coisa do vício se tornou uma profecia auto-realizável. E quando ela caía nas drogas, as pessoas ficavam irritadas e bravas, mas eles colocavam ela nesse papel. E eu realmente queria mostrar isso”, conclui. “Christiane realmente me mostrou que há uma relação íntima entre como as pessoas te tratam e quem você é”.
Entre todos os textos e entrevistas com Christiane que li, uma das suas frases ficou ecoando na minha cabeça por muito tempo: “Heroína é parte de quem eu sou, como poderia me arrepender? Ela me fez rica, me fez famosa.” Queria saber qual era a impressão de alguém que tinha convivido com essa figura quase mitológica, então pergunto para Sonja: Você acha que ela se arrepende? Sonja reforça: “Ela realmente não se arrepende. Mas isso é grande parte do motivo pelo qual a admiro”.