alcateia #18, christiane f
Quando o muro de Berlim caiu, há exatos 25 anos, ela preferiu ficar em um quarto com heroína do que ver a história sendo feita.
Quando o muro de Berlim caiu, há exatos 25 anos, ela preferiu ficar em um quarto com heroína do que ver a história sendo feita - com a justificativa de que “uma vez aberta, a fronteira estaria assim no dia seguinte”. Com 18 anos, tinha 400.000 marcos alemães em direitos autorais na conta bancária. Ela visitou Federico Fellini em Roma, andou no jatinho particular de David Bowie, conheceu Nina Hagen, e Nick Cave passava dias se escondendo na casa dela. Música, aliás, era um fator importante na sua vida: o apartamento da juventude era dividido com a vanguarda musical alemã, que incluía o dono da primeira loja de discos punk da cidade; o primeiro músico punk de Berlim, Jackie Eldorado, que lambeu a perna inteira de Iggy Pop em um show; e integrantes de bandas como Abwärts e Einstürzende Neubauten. O papel que teve no meio foi tímido: trabalhou na loja de discos, namorou o integrante de uma das bandas, contribuiu para uma das rádios e gravou algumas músicas. Nada disso foi o que a fez famosa.
Christiane Vera Felscherinow nasceu em 20 de maio de 1962, em Hamburgo, na Alemanha, filha de um pai abusivo que a abandonara e de uma mãe negligente que a deixava às soltas em um conjunto habitacional de concreto que fedia a mijo e merda. Ela cresceu excluída pelas crianças da região, presa em um ambiente escolar de violência, e antes dos dez anos fez os primeiros furtos. Pouco depois, começou a consumir álcool. Com 12 era haxixe. Com 13, heroína. Com 14, caiu na prostituição. É curioso pensar que, na primeira vez em que a ofereceram maconha, negou, com medo: “Eu não sabia muito bem o que era aquilo. Somente que era uma droga, e absolutamente proibida. (...) Quando chegou a minha vez, recusei. Eu não tinha intenção de recusar. Tinha tanta vontade de fazer parte da turma! Mas era uma droga! Eu não podia ainda! Isso me causava realmente muito medo”, é o que ela relata no livro Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, criado a partir de um depoimento que ela deu a dois jornalistas quando ainda tinha 15 anos, publicado na Alemanha em 1978.
Quase cinco milhões de cópias foram vendidas pelo mundo inteiro e o livro foi leitura obrigatória na Alemanha por muito tempo. A versão cinematográfica, de 1981, ainda traz o próprio Bowie, com quem Christiane teve a chance de se encontrar na estreia do filme: “estava tão nervosa que tive que cheirar muita cocaína para aguentar”, ela fala, antes de contar que se decepcionou com o tamanho pequeno do cantor e com o fato de ele não ser nem um pouco tão impressionante pessoalmente como na capa de Diamond Dogs.
Eu me encontrei novamente com o filme há um ano, quando sentei na sala da casa dos meus pais e acompanhei a trajetória triste com meu irmão mais novo. Dessa vez, mais velha, novos detalhes passaram a me chamar atenção: como Christiane foi vítima do impulso e do acaso e como, mesmo com medo da droga e daquele mundo, acabou cedendo por uma série de fatores que foram necessários para que chegasse lá. Como ela fala pro namoradinho da época, Detlev, que queria passar o fim de semana com ele, mas só se fosse sem heroína. Como ele pede pra que ela nunca se pique. Como ela fica surpresa com a primeira crise de abstinência. E como, principalmente, a droga é o fruto dos desentendimentos e também da união entre ela e seus afetos: com o namorado, inclusive, a heroína é utilizada como moeda de cuidado, carinho e amor.
A primeira biografia criada a partir de entrevistas acaba esperançosa: Christiane vai para uma cidade do interior se reestabelecer. Na nova confissão, ela conta que ficou limpa por 5 anos - e “limpa”, na sua própria denominação, significa apenas longe da heroína: álcool e cocaína era companhias frequentes mesmo durante esse tempo. As recaídas com a sua droga favorita foram muitas ao longo dos anos, e ela admite que ainda hoje aceita alguns gramas quando sente que não consegue mais aguentar o estresse da vida que leva. “Eu nunca quis desistir das drogas. Eu não conheço nada além disso”, ela declarou à revista VICE, completando: “Eu sei que vou morrer logo, mas eu não deixei de fazer nada na minha vida. Estou bem com isso”. Em entrevista para o Guardian, Christiane confirma que não tem arrependimentos: “Heroína é parte de quem eu sou, como poderia me arrepender? Ela me fez rica, me fez famosa. Eu viajei no jatinho do David Bowie, e tudo por causa dela”.
“Dentro de um ano, posso estar morta”, Christiane nos fala no primeiro capítulo de A vida apesar de tudo, se referindo à realidade da sua saúde atualmente. “Tenho cirrose e hepatite C do tipo mais grave da Europa, não faço ideia de quando contraí. Transpiro o tempo todo. Tem dias em que me sinto tão cansada que quase não fico consciente. Tremo da cabeça aos pés. Nesses dias, como gostaria de nunca ter experimentado drogas, nunca ter tido a sensação maravilhosa de uma picada, pois é o preço que se paga”, ela continua. E completa: “Perto disso, a crise de abstinência é brincadeira de criança.”
Com 51 anos, Christiane ainda bebia muito e fumava maconha, “porque sem isso a vida na Terra não seria mais suportável”, e está no programa de metadona pra se manter longe da heroína - embora nem sempre consiga. “Eu sou e vou continuar sendo uma junkie star. Um animal de feira”, ela fala, relatando sobre as pessoas que vêm pedir para tirar foto, às vezes com toda a família. “E quando se trata de amizade? De hospitalidade? De beber na mesma xícara? Não tem hepatite C? Tenho, é verdade”, continua, escancarando a própria humanidade, que aliás sempre esteve ali, em cada depoimento dado com voracidade, como os jornalistas que a entrevistaram alegam, mas que costumamos com frequência esquecer.
Não é o caso de Sonja Vukovic, a jornalista que acompanhou a escrita desse segundo livro e com quem conversei na época do lançamento. Mas isso fica pra semana que vem.
No próximo capítulo…
“Eu fiquei surpresa porque eu sabia que ela era a viciada mais famosa do mundo, mas quando ela chegou eu só pensei que ela era tão linda. Unhas feitas, lábios vermelhos, cabelo pintado. Ela estava muito bem para uma mulher de 50 anos, realmente bonita, e, como era inverno, ela usava um casaco longo e luvas, muito elegante. Ela sentou e pediu uma água com gás e suco de maçã, e então tirou as luvas. Foi a primeira vez que a reconheci, porque nas mãos você podia ver onde as agulhas estiveram, todas as cicatrizes”. - Sonja Vukovic conversando comigo via Skype, direto de Berlim
minha dose de realidade e alegria semanal é atualização de alcateia
Texto forte e impecável! Tenho uma dúvida, a Christiane é alguém real?