alcateia #11, e quando a saúde assusta?
O ecossistema em que existe alguém doente se desenvolve em um equilíbrio delicado. Quando a saúde chega, como que o doente pode ocupar o lugar do saudável?
Sentir-se assustada pela doença é diferente de se assustar com a saúde. Quando a saúde assusta? É na saúde que estigmas específicos relacionados a doenças mentais, que se encontram controladas, começam a aparecer. O ecossistema em que existe alguém doente se desenvolve em um equilíbrio delicado. Comumente, famílias e ambientes disfuncionais apresentam pelo menos alguma pessoa com problema psicológico que é sintoma dessa disfunção relacional. O que acontece quando o problemático fica bem? Como vai se encaixar na organização caótica em que cada um tinha um papel definido? Como que o doente pode ocupar o lugar do saudável?
Meu caso é bastante específico: os 5 episódios câncer são prováveis profetas de outros, mas eles abrem a porta para um caminho livre dessa doença. Torço para que seja o meu, tenho medo de que não seja. A fibromialgia me dá medo de como minha mobilidade, força e processo cognitivo vão estar daqui a 40 anos. E a bipolaridade tipo 2, com profundos episódios de depressão, assustaria se os remédios não existissem. Tenho medo de que, sem tratamento, poderia enlouquecer, ficar demente, perder o contato com a realidade (mas não vai acontecer pois terapia & remédios). Medicamente falando, todas essas possibilidades são altamente improváveis, já que meu caso é super bem controlado e tem uma série de medidas profiláticas de curto e longo prazo para garantir um tratamento de doenças crônicas de forma completa. Mas chega de falar de mim.
A nossa fantasia de uma saúde livre some quando nós, doentes controlados, voltamos à ativa - ao estigma - e é nessa desilusão que o medo aparece. Como nossa saúde vai interferir no ecossistema antigamente equilibrado e adaptado à doença?
A reação do ambiente ao redor é de invalidação da saúde conquistada. Se estamos emocionalmente, mentalmente ou fisicamente sobrecarregadas, conclui-se que é porque não sabemos lidar com nossas emoções, tempo, espaços mentais ou corpo físico - nega-se a manifestação de saúde em um ambiente de doença controlada. Se existe uma reclamação sobre algum processo falho, seja na família, nos relacionamentos ou no trabalho, o automático é a conclusão de que seja culpa da pessoa com o problema psicológico, e não do processo, como se a pessoa fosse eternamente doente e incapaz, como se ela não pudesse existir fora do estigma. Não se considera que a doença esteja controlada, que o indivíduo esteja bem - nem mesmo que houve erro no processo, na interpretação ou na leitura feita pelo ser dito normal.
Doentes controlados, às vezes, podem ser mais saudáveis - pelo autoconhecimento adquirido, pelas ferramentas para lidar e pelo tratamento - que as pessoas que chamamos, de forma errada, de normais. Sejamos honestas: muita gente “normal” não se trata, nem busca saber que benefícios poderia colher, e muito menos se há necessidade real de tratamentos. No meio disso, se proliferam pessoas que precisariam de tratamento e não fazem, pessoas que não entendem e não sabem reconhecer como e se estão em crise. E mesmo aquelas que desfrutam de uma vida psicológica saudável não fogem do ato de manter estigmas em relação a quem não é naturalmente saudável mas conquistou a saúde.
A conselheira de adictos Alexis Neiers explica que, muitas vezes, ao voltar para casa com a saúde conquistada, o adicto é recebido por uma família que agora passa a rejeitá-lo, a negar a recuperação e o espaço no ambiente familiar. É triste porque o suporte é muito importante para o viciado recuperado, e é triste também porque essa saúde advinda da recuperação afeta a família às vezes muito mais do que durante o vício ativo. Existe um grupo, assim como o AA e o NA, dedicado a parentes de pessoas viciadas: o Al-Anon (até porque viciado faz *muita* merda com a família). São sentimentos válidos e genuínos para o parente, mesmo que nocivos pela pessoa em recuperação. Mas a pergunta fica: por que muitas vezes o viciado em recuperação causa mais estresse e rejeição do que aquele que está na ativa?
E daí vem outra pergunta: por que na saúde os conflitos relacionados à doença podem persistir ou piorar? Existe uma dinâmica que se cria quando há um ser disfuncional, e reequilibrar essa dinâmica quando esse indivíduo se tornou saudável é altamente desafiador. O rótulo de “problemas mentais” feito em marcador permanente, exaltando o estigma que persegue o indivíduo, é um processo de desumanização que isenta todos da validação ou percepção de qualquer contribuição, crítica, sugestão ou exigência. Reivindicações são percebidas sob a lógica de que aquela pessoa tem um problema psicológico, tirando da mesa o fato de que estão saudáveis. De novo, foi a saúde que assustou. É confortável para caralho estar nessa posição: de cima do trono da normalidade, descartar qualquer atitude de quem sofre de problemas psicológicos é uma forma de não olhar para si e para o ambiente.
Estar saudável não é se liberar do estigma - e eu aprendi muito bem.
Uma pena. E para você, quando a saúde assusta?
Eu sempre tive uma saúde muito boa, mas ultimamente ando um pouco hipocondríaca, talvez por conta da menopausa chegando x me adaptando a um sistema de saúde (alemão) que acho ruim, não tem medicina preventiva, você não consegue uma consulta com uma gineco com menos de 3 meses e aí eu piro que vai ser tarde demais. 👀
Entendi saúde e doença como coexistentes, ainda mais na sociedade pós capitalista que vivemos, quem está cem por cento 'saudavel'? Recomendo o livro o normal e o patológico, de Georges canguilhem.