alcateia #41, estratégias de guerra para a conquista da beleza
Talvez, pensar que faria descobertas incríveis se não passasse tanto tempo pesquisando sobre beleza seja só mais uma forma de alimentar meu ego.
A fachada em quadrados pretos e brancos da Sephora é reconhecida à distância. Entrar na loja é uma experiência sensorial completa: a mistura dos perfumes, a música bem escolhida, todos os gatilhos visuais, as texturas de diferentes produtos. A paleta de sombras que mais quero no momento está em oferta, mas será que eu preciso tanto dela? Ela é tão diferentes das outras?
A caixinha era pequena, talvez 10x15cm, no máximo 5cm de altura. Dentro, em compartimentos de plástico, estavam três andares, cada qual com suas divisões. Como uma planta de imóvel, cada andar tinha uma função (sombra, blush e batom) e cada peça suas características (cores, texturas). A caixinha ficava em uma gaveta de madeira densa, escura, a mais alta do nicho na parede. Para que alcançasse, abria a gaveta mais de baixo e subia nela, podendo então resgatar o tesouro perdido. Com menos de 10 anos, o azul e o rosa pastel eram minhas sombras favoritas, e eu pintava as pálpebras em tons de céu se pondo.
Quem nasceu nos fim dos anos 90 não faz ideia da terra desolada que havia aqui: não havia Sephora, não havia MAC. Para comprar algo do limitadíssimo estoque de Dior ou Lancôme, era preciso ir a lojas de produtos importados. Nenhuma marca nacional fazia maquiagens coloridas como hoje. A vida era triste na era a.B. (antes de Bruna Tavares).
Os anos da adolescência maquiando amigas, os vídeos no YouTube (amém Karen Bachini, Tati, e todas as gurus de beleza do começo dos anos 2010), o curso no Liceu, a experiência no mercado de beleza, de repente, pronto: eu tinha investido tempo e dinheiro para ter os produtos e o conhecimento para maquiar bem, muito bem.
Drunk Elephant, Glow Recipe, The Ordinary, Sol de Janeiro, Youth To The People, Hello Sunday, Moon Juice. Quando as marcas de skincare começaram a ter esse tipo de nome? Frente a frente com o espelho quadrado e iluminado da loja, com o corpo inclinado para ficar a poucos centímetros de distância, as costas doendo pela curva forçada, conseguia analisar cada poro da minha pele.
Se o protetor solar começou cedo (amém mamãe), faz sentido que a evolução consumista tenha me levado a testar centenas (eu disse centenas) de produtos de beleza. Os estudos - formais e informais - de cosmetologia, os artigos de dermatologia, e pronto: lia fórmulas como se fossem poesia.
Com a mão coberta de cores de sombras, batons, blushes, o próximo território a ser conquistado é o de esmaltes, que estão expostos como se fossem tinta em uma loja de arte. Suas camas coloridas criam um arco-íris para apreciação.
As antigas unhas roídas eram testemunhas, ou melhor, evidências das crises de ansiedade, dos comportamentos compulsivos, da hipomania. Unhas longas exercem um poder simbólico relacionado às nossas crenças sobre autoconfiança e feminilidade, por isso, mesmo com menos dedicação aqui, aprendi o que era preciso para ter um cuidado que permitisse que eu me tornasse uma dessas mulheres (agora que estou em um relacionamento estável com um homem, as unhas curtas sinalizando a sexualidade perdem a importância). Menos dedicação, sim. Um sistema completo para unhas de gel e acrílico em casa também.
As marcas de cabelo ocupam a esquina mais séria da loja. Organizados com suas embalagens sóbrias, deixam a cacofonia de cores para trás. É uma conquista ainda em andamento.
Na fila da cafeteria do shopping, com dez anos, uma pessoa, dona do lugar, começou a mexer no meu cabelo, de forma quase automática. “Desculpa”, ela disse, pega de surpresa. “Nunca vi um cabelo lindo assim”. Com uma juba de fios loiros, lisos, macios e brilhosos, meu cabelo foi minha identidade por muito tempo. Então veio a quimioterapia. Uma década depois, ainda quero mergulhar nas particularidades eletrostáticas dos fios, nas interações com a água e nas implicâncias do pH nesse equilíbrio.
Fora da loja, a única coisa que me interessa é o consultório da minha dermatologista, para os procedimentos estéticos de menores ou maiores níveis de invasão e dor. O gosto de menta do chocolate do hospital era o prêmio, a prova de que, aos cinco anos, não tinha chorado no exame de sangue - e de que agulhas jamais seriam um problema. Depois das mais de mil que entraram no meu corpo ao longo dos anos, é claro que procedimentos estéticos seriam simples.
O que me fascinou foi a diferença da hidroxiapatita de cálcio e do ácido poli-L-láctilo na bioestimulação de colágeno, o quanto o comprimento e profundidade das ondas é relevante nos lasers estéticos, os impactos que o tecido cicatricial dos fios de PDO tem num possível futuro facelift, as poucas pesquisas sobre botox preventivo por falta de tempo de análise e as hipóteses de que acabe atrapalhando em vez de ajudar pelos estudos dos músculos e da fáscia, toda a tecnologia com ultrassom e radiofrequência, todos os avanços tecnológicos, científicos, e todo o discurso em volta deles - que fascinante esse mundo, né? Quero todos, por favor.*
*Não tenho nenhuminha credencial a não ser a curiosidade, mas se quiserem trocar ideia sobre procedimentos que queiram fazer, me chamem no Instagram - eu também sou ótima em indicar dermatologistas.
Não houve nada em que me interessei sem que ficasse obcecada, quisesse mergulhar fundo, aprender detalhes dos detalhes dos detalhes. Qual será o próximo campo da beleza que vai me deixar obcecada, me fazer investir milhares de reais em 50 vezes sem juros? Que vai me fazer investir dezenas de horas, leituras, palestras e cursos? O que eu faria com esse tempo se não me importasse em cuidar da minha aparência? Refletir sobre o nosso olhar em relação à beleza (como já fiz de forma aprofundada aqui) é pensar que caímos no limbo da autofixação ou da produtividade. Menos do que aperfeiçoar minha própria forma, absorvo o conhecimento como se, ao me apropriar dele, conquistasse algo mais importante do que a beleza em si (e no fim mais inútil também).
Enquanto isso, na Coreia do Sul, o movimento feminista 4B tem milhares de devotas. O objetivo em comum é um só - ou melhor, 4: não transar com homens, não parir, não namorar homens, não casar com homens. Herdeiro do movimento Escape the Corset, um objetivo secundário é a recusa a se dobrar a qualquer padrão de beleza tóxico - ou seja, todos. O país é um dos dez maiores mercados de beleza e o terceiro na importação de cosméticos segundo a Wikipedia, então a ação é revolucionária. Todos os itens dessa lista são rejeitados. Se a gente não se importasse em ser bonita, quantas coisas mudariam no mundo? Quantas indústrias acabariam falindo? O que eu faria com esse dinheiro se não gastasse com isso? E que tipo de ideia genial eu teria se dedicasse meu tempo para outra coisa?
Talvez, pensar que faria descobertas incríveis se não passasse tanto tempo pesquisando sobre beleza seja só mais uma forma de alimentar meu ego.
Estou chegando na famigerada idade do botox preventivo - e me pergunto se farei ou não e porquê. Eu faço a mesma pergunta que você se faz ao final do texto. É um looping infinito e não tenho resposta nunca.
Mais um texto ótimo, Clari!
Inclusive, você conhece o trabalho da Jessica DeFino? Ela é jornalista, crítica da indústria da beleza e tem uma newsletter aqui, a The Review of Beauty. Tenho sempre reflexões interessantes a partir dos textos dela